Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu
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O lado B de Chico Buarque

Trajetória do compositor tem ambiguidades e paradoxos que são retratos do Brasil

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Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'

O lado A do senhor que celebra 80 anos neste próximo dia 19 de junho todos conhecem. Chico Buarque é, para usar o termo de Glauber Rocha, um "gênio da raça".

Já antevendo a maré exaltativa a Chico, esta coluna buscará outros lados do artista. Houve vezes que o homem não se mostrou à altura do gênio. Esta coluna busca celebrar os 80 anos do homem, não do mito. E todo homem, mesmo os gênios, tem seu lado B.

Karime Xavier / Folhapress
Retrato da banda de Chico Buarque. CHICO BUARQUE - TURNÊ "QUE TAL UM SAMBA?". O cantor Chico Buarque "passa o som" com integrantes da banda. - Karime Xavier/Folhapress

O que falta ao literato genial Chico Buarque? Quase nada. Ele já ganhou três Prêmios Jabuti e o Prêmio Camões, principal troféu literário da língua portuguesa, pelo conjunto da obra. Falta um assento na Academia Brasileira de Letras, mas isso não depende somente dele. O que lamentamos é que Chico ainda não tenha escrito suas memórias.

Chico vem fugindo de repensar sua trajetória usando o subterfúgio da literatura. Em "O Irmão Alemão", fantasiou a vida familiar. No ainda inédito "Bambino a Roma", promete uma autoficção sobre o fim de sua infância na Itália.

Chico já publicou dez livros. São obras que vão da literatura infantil ("Chapeuzinho Amarelo") a críticas sociais ("Fazenda Modelo"), de alegorias das elites ("Leite Derramado") a histórias da época da ditadura ("Anos de Chumbo"). Escreveu livros intragáveis, como "Estorvo", e brilhantes, como "Budapeste". Publicou peças de teatro que marcaram época. Mas nunca escreveu uma autobiografia.

Chico, como o gênio que é, ainda nos deve uma autobiografia à altura de um "Verdade Tropical", espetacular livro de memórias escrito por Caetano Veloso em 1997. Desde a década de 1980, Chico acusa os jornalistas de publicarem mentiras a seu respeito. Então, passou da hora de publicar um livro de memórias, em que coloque sua versão dos fatos, narrando a nós, seus fãs, sua trajetória pessoal, artística e profissional.

Teria Chico disposição de mergulhar a fundo em si mesmo? A autoanálise teria de lidar com seus mais difíceis paradoxos. Por exemplo: como um defensor da liberdade durante a época da ditadura apoiou a censura anos mais tarde? Em 2015, ele participou da campanha que pedia a mordaça a biógrafos, quem se lembra? Aliado a outros medalhões da MPB, Chico integrou o grupo Procure Saber, que demandava publicamente a censura a livros não autorizados.

Quem diria, Chico e Bolsonaro concordaram em algo! Quando soube que o compositor era favorável à censura de biografias independentes, o então deputado disse: "Dou-lhes boas-vindas em nome do clube dos sensatos. Concordo com Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil que é preciso alguma censura". Até hoje Chico não reviu seu posicionamento, dando a entender que ainda pensa da mesma forma que o ex-presidente fascista.

Outro ponto sombrio da biografia de Chico é a negativa do compositor por anos a fio a todos que pediam para reencenar a peça "Roda Viva". Ele também nunca permitiu que o texto da peça fosse republicado em livro. "Roda Viva" só foi reencenada em 2019, em pleno governo Bolsonaro, mais de cinquenta anos depois da montagem original. Por que demorou tanto tempo? Por que tantas negativas? Será que é por que em "Roda Viva" o compositor desanca a Jovem Guarda e a Tropicália?

Há outros pontos tortuosos da vida de Chico que merecem detalhamentos, especialmente na política. No início da sua vida cívica, ainda bastante jovem, Chico integrou grupos da extrema direita católica paulistana. Pouco tempo depois, na época da faculdade, quase engajou-se na resistência armada ao golpe de 1964, chegando a juntar coquetéis molotov na garagem de casa.

O homem adulto também teve seus paradoxos. Em 1982 apoiou Miro Teixeira, do PMDB, em vez de apoiar o esquerdista Leonel Brizola para governo do Rio de Janeiro. Hoje visto como um petista em tempo integral, em 1985 ele apoiou FHC para prefeitura paulistana, em vez de apoiar Eduardo Suplicy, do PT. Em ambas oportunidades foi achincalhado pelas esquerdas. Em 2005 Chico se negou a assinar manifesto de apoio ao petista José Dirceu, apontado como organizador do mensalão no Congresso. Do ufanismo à ditadura da Cuba de Fidel Castro, passando pela presença ao lado de Lula no dia do depoimento da presidente Dilma Rousseff no Senado Federal, em 2016, ainda carecemos de uma análise densa do cidadão Chico.

E como analisar seus posicionamentos mais recentes? Há dois anos Chico se rendeu às patrulhas identitárias e disse que não mais cantaria sua bela canção "Com Açúcar Com Afeto". A letra conta a história de uma mulher resignada que sofre quase sem reclamar o machismo do marido. Para a doentia patrulha da internet, não há espaço para eus-líricos criativos nem para a arte que não seja figurativa. Tudo é político, tudo responde primariamente às circunstâncias sociais. Espanta que Chico tenha caído nessa cilada argumentativa.

Se for levar as pautas das patrulhas identitárias da internet às últimas consequências, Chico também deveria deixar de cantar outras canções de seu lindo repertório. Existe mulher mais submissa do que a de "Atrás da Porta", que se humilha diante do amado? A mulher de "Feijoada Completa" é mera cozinheira servil das vontades do marido, que festeja entre amigos. Tomara que Chico não renegue essas obras-primas também.

Aos 80 anos, o "gênio da raça" tem do que se orgulhar, assim como o Brasil, de ter produzido um ídolo de sua estatura. Mas, por ser um gênio humano, Chico tem vacilos que não podem ser glamourizados. Em suas ambiguidades e paradoxos, o homem e o mito Chico Buarque de Holanda são retratos do Brasil.

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