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Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

Descrição de chapéu Cinema mostra de cinema

'A Filha Perdida' é mais profundo que 'Madres Paralelas', de Almodóvar

Filme baseado em livro de Elena Ferrante é o que melhor representa diversas facetas da maternidade

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Dois filmes sobre maternidade exibidos num dos maiores festivais do mundo: a comparação entre "Mães Paralelas", de Almodóvar, e "A Filha Perdida", de Maggie Gyllenhaal, era inevitável.

Houve quem visse mais profundidade no filme do espanhol ("um estudo sobre maternidade", escreveu Bruno Ghetti), do que discordo, como escrevi na última coluna. Chego à ousadia de sugerir um intercâmbio de títulos: o longa da americana é uma obra que de fato aborda o conceito de paralelismo aplicado à maternidade. Seu filme, baseado na obra homônima de Elena Ferrante, se estrutura em torno do encontro entre a jovem Nina (Dakota Johnson) e a quarentona Leda (Olivia Colman, e mais jovem na pele de Jessie Buckley): mães paralelas que observam, com mútuo incômodo, suas distintas reações à experiência de maternar.

Milena Smit e Penélope Cruz em cena do filme 'Madres Paralelas', de Pedro Almodóvar - Divulgação

Os dois filmes exibidos no Festival de Veneza se voltam ao passado, mas vejo entre eles uma diferença brutal: enquanto Almodóvar termina com um pleito de valorização do passado, Gyllenhall propõe uma reflexão sobre o tema contemporâneo da maternidade. Um termina em esqueletos, a outra com uma questão para o futuro: como lidar com as cicatrizes inevitáveis que a maternidade impõe às mulheres?

A atualidade do filme de Gyllenhaal –sua primeira incursão em roteiro e direção– ficou evidente na multiplicidade de vozes femininas que brotaram em decorrência do filme. Não falo aqui somente de críticas —apontei que o filme de Almodóvar foi elogiado por uma absoluta maioria de críticos homens—, mas principalmente de reflexões profundas publicadas em mídias sociais.

O longa trouxe também à tona uma curiosa discussão: seria ele mais um mero telefilme ou teria Gyllenhaal personalidade cinematográfica? É um debate que incomoda de saída: quantas vezes a mesma ambição é imposta a diretores homens? Gostaria de ver a mesma preocupação ocupar o debate sobre a produção de inúmeros cineastas medíocres do gênero que domina os meios de produção da indústria audiovisual —apenas 12% das 250 maiores produções americanas de 2021 tinha diretoras mulheres.

O que primeiro salta aos olhos em "A Filha Perdida" é a sensibilidade de realização. Este é um filme construído sobre olhares e elipses, deixando lacunas capazes de refletir o desconforto e o estranhamento vivenciados pelas personagens principais.

É notável também a capacidade da diretora em recriar sensações tão íntimas e profundas numa espectadora feminina, como é o meu caso: o medo de andar sozinha num caminho deserto, o prazer silencioso de soltar o fecho de um sutiã por debaixo da blusa, a intimidação física pela simples presença de outros homens. Há diálogos poderosos que chacoalham as bases do senso comum da nossa sociedade patriarcal. "Como você se sentiu longe das suas filhas?", ao que se responde: "Foi maravilhoso".

Gyllenhall encontrou também soluções habilidosas para transpor aspectos sensoriais importantes do livro de Ferrante: as frutas podres no cesto, o farol que ilumina o quarto regularmente, a cigarra, a mancha no travesseiro.

Olivia Colman em cena do filme 'A Filha Perdida' - Divulgação/Netflix

O trabalho de montagem de Affonso Gonçalves sustenta uma fluidez notável entre o passado e o presente de Leda, intercalando com sensibilidade nostalgia, desconforto, sensualidade e remorso.

São muitos os sucessos na realização, mas seria desonesto não apontar as limitações que vejo nessa adaptação audiovisual da poderosa obra literária de Ferrante.

A direção de fotografia –assinada pela talentosa Hélène Louvart– fez a opção de uma proximidade extrema com as personagens femininas, com o uso frequente de close-ups tanto nas próprias atrizes quanto na sua percepção do que se passa ao redor. O artifício, que costuma construir intimidade do espectador, a mim causou claustrofobia: é tamanha a adesão à visão subjetiva de Leda que desejei que esse olhar se ampliasse para além dos seus sentimentos.

Explico. No livro, a visão da protagonista Leda é de fato onipresente: ela é a narradora e tudo se comunica a partir da sua voz e do seu ponto de vista. Na transposição para o filme, contudo, sem uso de voz em off, todo o universo da personagem é afunilado para o rosto da atriz, sem o ancoramento em memórias e reflexões.

Essa espécie de cabresto que é colocado no espectador fica claro no tratamento dado à trama da boneca. A subtração do brinquedo por Leda é um evento crucial para a narrativa e, no entanto, não vemos isso acontecer na tela. Gyllenhaal opta por uma cena em que Leda abre sua bolsa no carro, revelando a boneca e com ela uma ambiguidade indesejada: teria alguém colocado o objeto ali?

Ao mostrar Leda escondendo a boneca no armário e conferindo se ela continua ali, fica ressaltado um senso de perigo —o risco inerente a manter a posse daquele objeto ademais sem grande significação. Quando na verdade a questão da boneca guarda uma chave importantíssima para a compreensão de quem é essa mulher.

Por que pegar a boneca? Para torturar aquela criança? Aquela jovem mãe? Para ensinar algo a elas? Ou quem sabe para dar a si mesma a chance de cuidar de uma boneca-filha como não teve condição emocional de cuidar de suas filhas reais? O que veríamos no rosto de Leda no momento do furto: maldade, diversão, um impulso impensado?

O filme aposta num clima de suspense que erroneamente simplifica o drama presente de Leda para um senso de perigo ou de vigilância constante. Na obra de Ferrante, muito mais se esconde no desconforto de Leda no balneário em presença daquelas pessoas que encontra na praia.

Seu encontro com aquela família –no livro, napolitana como ela– não se resume à identificação de Leda com a jovem mãe Nina. Aquele grupo gera na protagonista uma abjeção a um aspecto do seu próprio ambiente de criação que vê neles: a pobreza intelectual. Nesse sentido, o apego de Leda aos livros não é puro esnobismo acadêmico como o filme faz parecer.

A transposição da nacionalidade da protagonista —que passa a ser inglesa— e do local de encontro —que passa a ser a Grécia— substitui um aspecto importante de reconhecimento cultural no outro para um outro elemento do ser estrangeiro: Leda se torna uma turista num país estranho. Entre ela e Nina passa a existir um abismo cultural, de modo que o que as une é a condição universal da maternidade.

É um aspecto interessante e que permite, talvez, um alcance até maior do filme, mas não deixa de ser o achatamento de questões profundas presentes no livro. E essa me parece ser a maior fragilidade da adaptação de Gyllenhaal.

Existe um filme talvez mais ousado que apostaria no mergulho em cenas longas que explorassem, por exemplo, o drama da jovem Leda para além de instantes de sufoco da vida domiciliar ou apaixonamento —e falo aqui tanto da personagem de Alba Rohrwacher quanto o mais evidente de Peter Sarsgaard.

Momentos sensoriais são importantes, mas existe uma aproximação incontornável entre a Leda jovem e a velha que se reflete em ações dadas de forma clara na narrativa de Ferrante: a Leda jovem abandona a família, a Leda velha rouba a boneca. Quais paralelos se pode traçar entre esses dois atos?

Saí do filme com a sensação de que ele é ao mesmo tempo muito curto e muito longo. Longo por repetir uma mesma faceta que já compreendi das personagens, e curto porque há tanto mais que gostaria de saber sobre elas: mergulhar no drama da Leda jovem ou então acompanhar a mais velha em seu remorso (ou não) e o preço do abandono na sua relação presente com as filhas.

Mas para além do filme que queremos, existe o filme que está lá. Elena Ferrante, em entrevista para o jornal inglês The Guardian declarou que nunca pediria a uma diretora para se prender aos seus escritos. "Eu não quero dizer: você tem que ficar dentro da jaula que eu construí", disse. "Temos vivido presas dentro de jaulas masculinas por tempo demais –e agora que essa jaula está colapsando, uma artista mulher tem que ser totalmente autônoma."

Concluo que, apesar das suas limitações, o filme de Gyllenhaal é uma contribuição mais do que bem-vinda ao cinema contemporâneo. Ela colocou a vida íntima feminina em evidência e trouxe para o debate público questões enfrentadas por todas as mulheres —tanto as mães quanto as não mães são julgadas em suas escolhas. Falar de uma questão pertinente a metade da população mundial: talvez não se possa pedir mais que isso de um filme.

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