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Cinema Maratona

Filme 'A Filha Perdida' retrata a culpa e o desejo de mães não naturais

História de uma mulher independente que abandona as filhas suscita discussão sobre ambivalências da maternidade

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Giovanna Bartucci

Psicanalista, é autora de "Onde Tudo Acontece – Cultura e Psicanálise no século 21" (Civilização Brasileira), livro vencedor do Prêmio Jabuti em 2014

Enquanto assistia a "A Filha Perdida", eu me perguntava que debates este filme suscitaria, dados o seu tema, densidade e complexidade. Com direção de Maggie Gyllenhaal e Olivia Colman no papel principal de Leda, a protagonista, "A Filha Perdida" trata das ambivalências da maternidade.

Mais que isso. Vivendo as ambivalências da maternidade como uma experiência transgeracional, a personagem se debate entre a necessidade de se discriminar da própria mãe, o desejo de maternidade e o desejo de se haver consigo mesma e a culpa que isso traz.

Cena do filme 'A Filha Perdida', dirigido por Maggie Gyllenhaal e protagonizado por Olivia Colman - Yannis Drakoulidis/Netflix

Temos aqui, então, a história de uma mulher —Jessie Buckley no papel da jovem Leda— que, em plena pujança profissional, sexual e materna, se sentindo demandada em excesso, e para cujo parceiro está sempre em segundo plano, toma a decisão de deixar as filhas, Bianca e Martha, de sete e cinco anos, e o companheiro para se haver com a própria vida.

A temática se complexifica à medida que a história de Leda nos é dada a conhecer a posteriori, por meio de memórias com as quais é confrontada quando, em férias em uma ilha grega, 15 anos mais tarde, se depara com uma jovem mulher, Nina —encarnada por Dakota Johnson—, e sua pequena filha, Elena, cujas interações reativam vivências aparentemente já sepultadas.

Sua turbulenta jornada se inicia no momento em que presencia o carinho com que Elena, com seu regador, ora refresca a mãe, deitada sob o sol em sua espreguiçadeira, ora sua boneca Neni, agora como uma mamãe atenciosa. Assim, em suas brincadeiras com Neni, Elena é tanto a mamãe que cuida, quanto (projetivamente) a própria filhinha que é cuidada. Amorosamente.

O ponto de inflexão do filme se dá quando Elena se perde da mãe durante uma violenta briga entre os pais, à qual assiste enquanto morde o rosto de sua boneca ferozmente. Leda encontra a menina, que, no percurso de volta à praia, perde sua boneca. Elena fica inconsolável; não há nada nem ninguém que substitua Neni.

Logo saberemos, contudo, que Leda, em uma atuação imperiosa, tomou Neni para si. Também ela havia tido uma boneca, chamada Mina, cujo cuidado confiou à filha mais velha. Filha que, digamos de passagem, queria (quer) tudo e mais um pouco. Nada era (é) suficiente. Havia, de fato, uma crueldade que a acompanhava quando não satisfeita. Com o intuito de ferir a mãe, o que o faz, Bianca acaba por danificar Mina. A jovem Leda, raivosa, joga o que resta da boneca pela janela, espatifando o brinquedo.

Notemos bem, Leda não é uma mulher de meia-idade solitária, amarga, egoísta, autocentrada, ensimesmada, infeliz. Há uma enorme diferença entre estar só e se sentir solitário. Ao contrário, aos 48 anos, Leda tem sentimentos de estupefação diante da natureza, canta, dança, estabelece vínculos; é professora de literatura comparada e tradutora e, acima de tudo, tem uma vida interior rica e intensa.

O que aqui fará a diferença, contudo, é o fato de as vivências reativadas em Leda atravessarem gerações. Em uma conversa com Will, rapaz que trabalha na praia, Leda é clara. Também ela havia sentido que sua mãe a "deixara" por não ser tão bela quanto ela. A mãe legara a ela o que tinha de pior, de mais repulsivo.

Assim como Leda, Martha, sua filha mais jovem, se ressente por não ter seios tão fartos quanto os da irmã e pensa que a mãe deu o melhor de si para Bianca. Bianca, ao contrário, jamais se deixa privar de nada. "Ela suga tudo de mim. Todos os meus talentos secretos", afirma a mãe. Mas a culpa materna, por experimentar sentimentos de amor e ódio e liberdade, nesse infindável jogo de espelhamentos entre mulheres, é implacável.

"Pobres criaturas que saíram de dentro de mim. As partes das duas que eu acho mais belas são as que são estranhas a mim. Assim, não tenho que me sentir responsável por isto (também)", confidencia Leda.

Nos dias que permanece com Neni-Mina, Leda dá a ela de mamar, limpa, troca sua roupa, dorme com ela. Nossa primeira associação seria pensar que, ao brincar com Neni-Mina, o que Leda busca é reparar o seu "ato" em relação às filhas. Mas, ao encontrar um verme dentro da boneca, possibilitando que ele de lá saia, sua jornada parece chegar ao fim. Sua estadia na ilha grega de Kyopeli permitiu que também ela afastasse de si o que vivia como o mais repulsivo.

A FILHA PERDIDA

  • Onde Disponível na Netflix
  • Elenco Olivia Colman, Jessie Buckley, Dakota Johnson
  • Produção EUA, 2021
  • Direção Maggie Gyllenhaal
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