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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Um casamento e um funeral

Quem sofreu por amor e manteve as aparências é melhor ator que Meryl Streep

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Dizia Mae West que a velhice não é para gente frouxa. No meu caso, ainda é cedo para dizer. Mas se trocarmos velhice pela separação amorosa, assino embaixo. Já dei várias vezes para esse peditório.

Todos os anos, o Oscar premia atores. Mas haverá maior representação dramática do que manter o rosto impassível perante a “ex” quando sentimos que estamos a morrer por dentro?

Quem sofreu por amor e manteve as aparências por um vago e talvez absurdo sentimento de autorrespeito é melhor profissional do que uma Meryl Streep ou um Daniel Day-Lewis.

Embora, aqui entre nós, seja difícil bater Adam Driver e Scarlett Johansson em “História de um Casamento”, o mais recente filme de Noah Baumbach para a Netflix.

Gosto de Baumbach por razões estritamente pessoais: cresci com ele. Não no sentido biológico do termo, embora essa coincidência seja importante —falo sobre Baumbach como os meus pais falavam de Woody Allen. Somos, em suma, colegas de geração.

Mas existe uma afinidade espiritual que é mais importante do que a biologia: os temas do cinema de Baumbach são os meus temas, as minhas preocupações, as minhas obsessões. Da deriva existencial de “Tempo de Decisão” à fobia do compromisso no espantoso “O Solteirão”, Baumbach tem sido o meu Virgílio na divina comédia da minha vida.

“História de um Casamento” não é exceção. Resumidamente, é a história de Charlie e Nicole. Ele, diretor de teatro. Ela, atriz. Apaixonaram-se, algures no passado, e nas primeiras sequências do filme até acreditamos que eles continuam nesse planeta quando se elogiam mutuamente.

Falsa impressão. Estão em terapia para casais e os elogios são um esforço para salvar o que pode ser salvo. Sem sucesso.

O que acontece a seguir é o calvário habitual dos ex-amantes, contado com o dramatismo cômico de Baumbach. Sim, lá encontramos o estoicismo das aparências, que esconde as lágrimas em privado. Pelo menos, até os advogados entrarem em cena.

Quando se sobe para esse patamar de guerra, a racionalidade vai derretendo e o outro é um estranho, uma
ameaça, um inimigo. É quase surreal como foi possível gostar daquela pessoa, daquele farrapo, daquele monstro.

Começa a luta: o que antes eram pequenas imperfeições, conversas sem significado, simples estados de alma partilhados na intimidade do quarto são agora crimes de lesa-majestade, fraudes dignas de um Madoff, matéria mais que suficiente para o Tribunal Penal Internacional.

E, com os crimes, entram em cena as “vidas não vividas”: se não fosse o outro, a tirania do outro, a asfixia do outro, a nossa vida seria um passeio no parque. Houve aqui um roubo imperdoável. Haverá indenização?

Esse caudal de acusações e impotências desagua no ódio irracional, o avesso do amor irracional de outros tempos. É um dos grandes momentos do filme: quando Charlie e Nicole se encontram a sós, tentam uma conversa “civilizada” —e acabam dizendo o impensável na cara um do outro.

São patéticos e cruéis. Mas aquela crueldade não é propriamente real. É circunstancial. O resultado é divertidíssimo e tristíssimo em partes iguais. Eu não disse que sobreviver a um divórcio merece sempre um Oscar de representação?

Sobreviver, eis a palavra. Porque sobrevivemos sempre —ou, talvez mais importante, nunca aprendemos nada. Essa, aliás, é a pergunta: para que amar se perder dói tanto? O escritor C.S. Lewis, que formulou a questão, dizia que a dor que sentimos faz sempre parte da felicidade que tivemos.

É uma boa resposta. Verdadeira, também. Mas Noah Baumbach ensaia outra: colocando Charlie, entre amigos, a cantar “Being Alive”, de Stephen Sondheim. 

A canção pertence ao musical “Company”, uma das obras-primas da Broadway, e a sua mensagem é, ao mesmo tempo, romântica e antirromântica.

A pessoa que amamos pode ser o nosso calcanhar de Aquiles. Mas é precisamente esse calcanhar que tornava Aquiles humano. E nós precisamos dessa humanidade; até precisamos do inferno que ela
contém para nos sentirmos vivos. Quem troca esse inferno por um paraíso de solidão?

Eu não. Noah Baumbach também não. Muito menos Charlie e Nicole, apesar de tudo e de tanto.

Se hoje forem a Los Angeles e procurarem por eles, é possível que continuem separados. Duvido que estejam sozinhos. Como sempre acontece, cultivamos as nossas ilusões com a mesma paixão com que um dia as iremos renegar. 

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