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Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

A pessoa que me convidou esperava que trabalhasse 92 horas para ela

Da próxima vez que sentir a tentação de roubar o tempo de alguém sem indenização, imagine a vítima no leito derradeiro

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João Pereira Coutinho

Assisto ao documentário "Quanto Tempo o Tempo Tem", de Adriana L. Dutra, na Netflix, uma bela meditação sobre a única riqueza que verdadeiramente temos: o tempo.

E dou por mim a pensar nos convites que recebo para escrever e falar sobre um tema meu.

Normalmente, leio a mensagem. Releio. Ainda confuso, imprimo. E até uso uma lupa de Sherlock Holmes para decifrar melhor o texto do email.

Frustrado, concluo que a mensagem não inclui o valor do pagamento. "Deve ser esquecimento", digo para mim.

Escrevo de volta, só para perguntar. A pessoa não responde. Ou, então, confessa que não há pagamento. Em certos casos, revela até incompreensão pela minha pergunta. Ou revolta, quando a medicação não é tomada com regularidade.

Aconteceu recentemente: caro professor Little Couto, você teria duas horas para falar sobre as ideologias políticas?

Minha cabeça fez as contas: para falar das principais —liberalismo, conservadorismo, socialismo, anarquismo— seriam 30 minutos para cada uma delas. Difícil, essa concisão.

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho, 10.jul.2023 - Folhapress

Mas, antes de falar, era preciso estudar: uma semana com cada ideologia, ou seja, um mês de leituras. Se, por dia, dedicasse três horas, seriam 21 horas por semana, ou seja, 84 horas por mês. Só em leituras.

Depois era preciso preparar a intervenção: mais seis horas, ao menos, totalizando 90 horas. Ou 92 horas, com a palestra.

Pois bem: como lembra um dos participantes no documentário sobre os ladrões do tempo, a pessoa que me convidou esperava que eu trabalhasse 92 horas para ela como escravo.

Mas o pior nem é isso. É ter visão mais ampla do fenômeno: tenho 47 anos. Se as coisas correrem bem, tenho mais 31 anos de vida —em Portugal, a expectativa média de vida para os homens ronda os 78 anos.

É uma estimativa otimista, atendendo aos meus hábitos aberrantes. Vamos baixar a régua para uns realistas 70. Restam 23 anos. Restam 276 meses. Restam 8.395 dias. Restam 201.480 horas. De vida biológica, não de vida biológica com qualidade, certo?

Nesse caso, é preciso seguir a ciência, como dizem os espíritos finos: na Europa, quem chega aos 65 tem normalmente mais nove anos de vida saudável antes do ocaso doloroso. Dá 74 anos de vida saudável.

Ou, adaptando ao meu caso, uns 65. Restam-me 18 anos, ou seja, 157.680 horas. De vida saudável, não vida consciente.

Se nesses anos restantes eu continuar dormindo sete horas por noite —o mínimo indispensável para manter minha beleza natural—, ficam apenas 111.694 horas. De vida consciente, mas não totalmente livre.

No fim das contas, preciso do trabalho. Se o horário básico de um trabalhador contemporâneo é de oito horas diárias, de segunda a sexta, numa média de 40 horas semanais em 48 semanas de trabalho, podemos roubar 34.560 horas. Ficam apenas 77.134 horas. É muito?

Não é. Porque você tem de fazer escolhas. Com 18 anos pela frente e, descontando sono e trabalho, isso dá uma média de 11,7 horas livres por dia. Ou, fora refeições, umas dez horas.

Se você dividir essas dez horas pelas paixões mundanas —livros, filmes, amigos, família, vagabundagem diversa— sobram duas horas para cada universo, ou 730 horas por ano.

Eis o ponto: para eu trabalhar 92 horas gratuitamente, terei de roubar esse tempo aos meus livros, aos meus filmes, aos meus amigos, à minha família, aos meus vícios. Por que motivo eu faria isso?

Ficando apenas nos livros: duas horas por dia soma 14 horas por semana. Contas por alto, isso me permite ler três livros por semana, mantendo ritmo razoável de 4,6 horas por livro.

É verdade: a pessoa me está pedindo que, a troco de nada, eu prescinda de 20 livros por causa dela, qualquer coisa como 5.000 páginas, mantendo uma média de 250 páginas por livro. E que livros serão esses?

No momento em que bato essas linhas, olho a estante dos clássicos inexplorados. Vejo os dois volumes da "Cidade de Deus", com 1.184 páginas, "Os Buddenbrook", com 744, os vários volumes de "Em Busca do Tempo Perdido", com 3.152, isso para ficar em 5.000 páginas.

Quando recebo convites insultuosos, a pessoa não está só roubando meu tempo. Aos meus ouvidos, ela proclama, orgulhosa: "Eu sou mais importante que Santo Agostinho! Mais importante que Thomas Mann e Marcel Proust juntos!".

Da próxima vez que você sentir a tentação de roubar o tempo de alguém sem oferecer uma indenização, imagine a vítima no leito derradeiro. Imagine a morte, sorridente, confessando: "Você ainda teria mais uns meses, mas alguém enrolou você com convites irrecusáveis".

E peça pelo perdão enquanto o tempo está do seu lado.

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