Descrição de chapéu

Proust, que se foi há cem anos, fez da morte um instante de revelação

O inferno para o escritor é, ao fim da vida, sermos tão só um nome frio, descarnado de uma obra capaz de nos perpetuar

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Fillipe Mauro

É professor de civilização brasileira na Universidade de La Rochelle, na França. Pesquisa a obra de Marcel Proust e sua recepção na literatura brasileira.

O compositor Reynaldo Hahn foi quem anunciou, há cem anos, em 18 de novembro de 1922, a morte de seu amante, o escritor francês Marcel Proust. Asmático, o autor de "Em Busca do Tempo Perdido" sofria havia semanas de uma bronquite incurável e não tinha mais forças para deixar o leito sobre o qual escrevia.

Uma de suas últimas aparições públicas foi a "soirée" do endinheirado tradutor Sydney Schiff, no hotel Majestic, onde festejou, ao lado de Picasso e Joyce, a estreia do balé "Renard", de Stravinski e Nijinska.

Imagem do fotógrafo Man Ray mostra Marcel Proust no seu leito de morte, em 1922 - Man Ray/Reprodução

Graças a doses de morfina, e com o auxílio da governanta Céleste Albaret, Proust se dedicava à interminável revisão dos últimos volumes de seu longo romance. "A Prisioneira", "A Fugitiva" e "O Tempo Redescoberto" são livros póstumos. Foram publicados alguns anos após sua morte por Gaston Gallimard.

Seu irmão, o médico Robert Proust, foi quem se encarregou das derradeiras e polêmicas correções, que hoje fazem a graça e o sustento dos arqueólogos de manuscritos da Biblioteca Nacional da França.

A famosa imagem do corpo exausto e sereno de Proust, mais compartilhada do que nunca nos últimos dias pelos salões literários das redes sociais, pertence à coleção do Museu d’Orsay. É obra do fotógrafo Emmanuel Sougez e foi feita um dia antes do sepultamento do escritor em sua austera tumba de granito negro do cemitério do Père Lachaise.

Às almas mais sensíveis, o pintor André Dunoyer de Segonzac ofereceu uma tradução em caneta e tinta nanquim, que agora habita as catacumbas dos arquivos de desenhos do Louvre.

Mas, além do anedótico e do biográfico, Proust nos legou "Em Busca do Tempo Perdido", essas modernas mil e uma noites narradas por uma Sherazade que anseia escrever para se salvar, e que são um romance sobre tudo. Sobre o tempo, sobre o amor, sobre a arte, sobre a política —e sobre a morte.

Geneviève Henrot, professora da Universidade de Pádua, observou com humor há alguns anos que "Em Busca" de Proust é um romance "onde ninguém nasce, mas onde muitos morrem e onde muitos mortos são evocados do além".

A morte em Proust é um instante de revelação. Ela iguala os seres e os mede não por sua estatura social, por suas convenções, por sua moral, mas, antes, pela envergadura de sua própria humanidade.

O inferno para esse escritor é, ao final da vida, diante da indesejável das gentes, nos revelarmos tão somente um nome frio, um nome descarnado de uma obra capaz de vencer a morte, saldar a vida mundana e nos perpetuar. Por isso o católico François Mauriac chamou Proust de místico sem Deus, autor de um evangelho dos agnósticos.

Essa é a sina do militar Robert de Saint-Loup em "O Tempo Redescoberto". O jovem e talentoso aristocrata, síntese perfeita do espírito ilustrado do clã dos Guermantes, morre em nome da pátria no front marroquino, durante a Primeira Guerra Mundial.

Na igreja de Combray, o narrador contempla as flâmulas negras que ornam seu funeral e que são bordadas em vermelho com as iniciais do sobrenome do soldado.

Mas Saint-Loup é um improdutivo, um fetichista. O esnobe consome a cultura, clássica ou das vanguardas, sem reproduzi-la e perpetuá-la. Pertence, segundo Proust, à triste espécie dos "celibatários da arte", daqueles que cultuam a beleza sem procriá-la.

O narrador vê, então, esse nobre filho dos Guermantes morrer sendo "mais de sua raça", isto é, reduzindo-se tão somente ao banal "G de Guermantes que, pela morte, ele voltara a ser".

Swann, sogro de Saint-Loup, diletante por excelência, nem ao nome tem direito. O judeu morre esquecido, na total indiferença de seus nobres amigos. Deixa somente sua fortuna à filha Gilberte, alpinista social que o renega para abraçar de vez o nacionalismo antissemita. A República de Vichy vinha logo adiante.

No julgamento de Minos, o personagem do escritor Bergotte tem mais sorte. Moribundo, o ídolo da juventude do narrador lamenta que seus livros sejam muito "secos" diante das sofisticadas pinceladas que erigem o pequeno muro amarelo na "Vista de Delft", de Vermeer.

Bergotte morre diante dessa tela preciosa, estirado pateticamente sobre um sofá. No entanto, esse escritor fictício, no qual se entreveem alguns traços de Anatole France, legou ainda assim ao mundo, por mais superficiais que sejam, os seus livros.

"Ele estava morto", proclama, de modo cirúrgico, o narrador, somente para poder, em seguida, se questionar: "Morto para sempre? Quem poderia dizê-lo?".

Página de manuscrito original da obra de Proust, antes de sua renovação pela Biblioteca Nacional da França - Stephane de Sakutin - 8.jul.22/AFP

Bergotte está morto. Mas, "durante toda a noite fúnebre, em vitrines iluminadas, seus livros, dispostos de três em três, o velavam como anjos de asas abertas e pareciam ser [...] o símbolo de sua ressurreição".

Tão logo se liberta do cárcere de seu amante, Albertine cai de um cavalo e morre. Mas o fantasma dessa morta "continua a viver" e aterroriza o narrador. Ele decide então seguir os passos de Ulisses, Eneias e Dante e descer ao submundo em busca de sua alma. Parte rumo a Veneza, naquele que era seu projeto eternamente adiado de périplo italiano.

"Para Proust, Veneza é a cidade do inconsciente", escreveu um de seus amores platônicos, o poeta Paul Morand. O romancista moderno não se interessa mais pela absolvição moral ou religiosa que lemos na "Divina Comédia". O submundo se converte, para ele, no grande reservatório de memórias e afetos, cuja alegoria maior são os canais nebulosos da sereníssima cidade submersa.

Uma década antes da morte de Proust, Thomas Mann publicou "A Morte em Veneza", sua novela favorita, aquela que julgava a mais bem acabada. É para Veneza que também o personagem de Aschenbach, disfarce literário do compositor Gustav Mahler, parte em busca de seu próprio retrato íntimo.

Na gôndola que o conduz pela lagoa de Veneza ao Lido, sente "um arrepio fugaz, um medo secreto, um quê de angústia". Esses "curiosos meios de transporte", herança de uma "época romanesca", são "tão caracteristicamente negros como são, entre todos os objetos do mundo, apenas os caixões".

As gôndolas, escreve Mann, provocam em nós, "com sua pintura negro-esquife", uma associação imediata "à própria morte, a féretros, a sombrios enterros, ao silêncio da última viagem". Há alguma graça na multidão de turistas que, olhando somente para si mesmos, com seus "selfie sticks", não notam que há, logo atrás, um Caronte de chapéu conduzindo-os pelo labirinto de canais do Hades.

Em Proust, o gondoleiro é "a mão misteriosa de um gênio" guiando-o pelos "atalhos desta cidade do Oriente". De volta a seu hotel no Canal Grande, o narrador reencontra enfim a alma de sua cativa Albertine. Mas não no mundo palpável. Na realidade, encarcerada dentro de si mesmo, "como no ‘chumbo’ de uma Veneza interior", que é como as masmorras do Palácio Ducal acabaram apelidadas.

Em Paris, por encantamento da memória involuntária, a calçada desnivelada do palacete da princesa de Guermantes remete o narrador ao piso ondulado da basílica de São Marco. O tilintar de uma colher sobre um prato faz ressuscitar o espectro da avó, há tanto esquecida.

Naquilo que seria mais uma banal reunião, ele percebe pela primeira vez "o tempo que passara" para os grandes nomes de sua juventude, todos velhos, alguns mortos. O que o "comove pela revelação de que [o tempo] também havia passado [para ele]".

Renasce, com mais urgência do que nunca, a resolução de escrever seu livro.

Deste livro, o Brasil ganha neste ano uma nova edição, agora com o título "À Procura do Tempo Perdido", traduzida por Mario Sergio Conti, colunista deste jornal, e Rosa Freire d'Aguiar. Em Paris, não há livraria sem sua vitrine proustiana, onde vários desses livros são expostos como "anjos de asas abertas". Proust, morto para sempre? Quem poderia dizê-lo?

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