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Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

'O Irlandês' retraça os meandros secretos do mal entre os homens

Admiro Scorsese, mas tenho horror à caceteação; hesitei, com culpa, diante de suas três horas e meia

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​A duração de um filme deve estar diretamente relacionada à resistência da bexiga humana. Este sábio mandamento é de Alfred Hitchcock.

Minha bexiga funciona bem, mas é melhor garantir a serenidade com que se assiste a um filme. Tenho para mim que tempo ideal de projeção é, mais ou menos, uma hora e meia. Mais do que isso, como em muitos filmes de hoje, o risco de entediar é grande.

Antigamente era essa a medida. Os cinemas ofereciam “sessões corridas”. Começavam às 14 horas (ou meio-dia nas salas mais populares, dez da manhã nos pulgueiros) e iam, de duas em duas horas, até meia-noite. 

Noventa ou cem minutos de filme, mais trailers e jornais de notícias, compunham a sessão. Os espectadores podiam entrar e sair em qualquer momento. Permaneciam até o final e esperavam a sessão seguinte para completar o que faltava. Havia gente, sobretudo nos pulgueiros, que dormia o dia inteiro na poltrona.

Admiro Scorsese, mas tenho horror à caceteação. Portanto, hesitei, com culpa, diante de “O Irlandês” e suas três horas e meia.

Enfim, respirei fundo e me lancei. Quando terminou, percebi que meu tempo deixara de existir e eu vivera, sem me dar conta, o andamento do diretor. Foi tão fascinante que, no dia seguinte, senti coceira de rever —e revi.

É forte a atração de Scorsese pelo passado norte-americano, tomado pelo lado do avesso, como em “Gangues de Nova York”. Pressupõe perspectiva da história ou da sociologia. Scorsese aponta, porém, para camada mais profunda, quando declara que “O Irlandês” é um filme sobre a morte.

Está longe de ser o seu primeiro com esse tema: em “Vivendo no Limite” (cujo título original, “Bringing Out the Dead”, pode ser traduzido livremente por “trazendo os mortos”), por exemplo, o foco intenso era a morte. E a morte, para o diretor, vincula-se ao além.

O autor de “A Última Tentação de Cristo” é católico fervoroso, a ponto de, quando adolescente, ter se destinado à vida religiosa. Abandonou o seminário pelo cinema, mas não sua fé, que o acompanhou num percurso pecaminoso de drogas e de múltiplos casamentos. 

Ele aprofunda em seus filmes essa tensão atormentada, não como desabafo pessoal, mas como pensamento teológico, sustentado por imensa cultura, tanto cinematográfica quanto filosófica.

A morte e a violência são, no universo de Scorsese, manifestações do mal. O diretor sabe que o mal é uma figura do não-ser: tudo o que existe foi criado por Deus e, portanto, é forçosamente bom.

O mal, no dizer de Santo Agostinho, é o que tende para o não-ser, para a corrupção, para a podridão. O mal é a ausência de Deus na criação; uma deficiência da criatura, uma privação.

Scorsese não faz a pergunta dos maniqueus, que Agostinho recusa: “De onde vem o mal?”, já que o mal não tem lugar, porque não é. Mas ele se inquieta em interrogar os meios, os caminhos, os agentes do mal na criação. Aproxima-se assim, fortemente, de Robert Bresson, outro cineasta católico, que intitulou um de seus filmes: “O Diabo, Provavelmente”, resposta a uma questão implícita.

Frank Sheeran, o irlandês, é boa gente, hábil no deixa-disso, fiel nas missões a cumprir. Sheeran entrou em contato com o mal na guerra; prosseguiu com pequenos roubos da carne que transporta. Mas é o encontro com Russell Bufalino, o mentor, o pedagogo, o veículo, que o faz dissolver-se, sem perceber, na corrupção da maldade. 

O início e o final da longa união entre os dois são marcados pela metáfora da comunhão: comer pão molhado no vinho. Uma criança, a filhinha de Sheeran, é a única que detecta a verdadeira natureza desse promotor da maldade, ao demonstrar ojeriza por ele.

Há muito mais a respeito de tudo isso em “O Irlandês”, mas seu ponto essencial é o fascínio do diretor em retraçar os meandros secretos do mal entre os homens. Questão que não é apenas religiosa. Para além das análises que a sociologia, a história, a economia, ou o que mais se queira, possam propor, permanecem mesmo para o ateu as questões metafísicas: por que existe o mal? Quais os seus caminhos? Por onde ele flui?

Dias antes das eleições de 2018, passei a pé ao lado de um carro. Aninhado no banco de trás, estava um garoto de uns quatro anos. Sorriu-me, eu sorri de volta; ele ofereceu, estendendo a mão esquerda, uma bolacha que comia. Então, sempre sorridente, fez, com a direita, o sinal da arminha.

O contraste entre a inocência do menino e o signo violento causou-me um choque. Pareceu-me o prenúncio irremediável de que entrávamos numa era infiltrada pelo mal.

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