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Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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One Love, no braço dos outros

Mídia, em ritmo de manada, dilui as grandes questões da Copa do Mundo

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O Jornal Nacional de quarta-feira (23) apresentou a estreia da seleção brasileira na Copa do Mundo do Qatar. Em blocos, como quase sempre ocorre nesses casos: Neymar, Vinicius Jr., Tite, torcida, adversário, capitão. A escolha de Thiago Silva para comandar o time em campo em seu terceiro Mundial mereceu um tempo do programa. A palavra braçadeira era o fio condutor do texto, assim como sua imagem, que apareceu algumas vezes na tela. A reportagem estaria completa não fosse a omissão de um detalhe: o acessório, corriqueiro em qualquer partida de futebol, era uma das polêmicas alimentadas pelo clima de intolerância que cerca o evento, inédito no Oriente Médio.

Muito antecipado pela mídia, inclusive no Brasil, o protesto planejado por sete seleções europeias contra a homofobia, na prática uma política de Estado no Qatar, fez água logo no início da competição. A ideia era que os capitães usassem uma braçadeira com a inscrição One Love, uma campanha idealizada há alguns anos dentro do futebol holandês para combater diversas formas de preconceito.

Na última hora, como já havia feito com a cerveja nos estádios, a Fifa proibiu o manifesto, ameaçando punir os atletas com cartão amarelo, chantagem explícita em um torneio de curtíssima duração.
O clima de indignação foi generalizado, inclusive por aqui, mas não o suficiente para fazer a imprensa brasileira questionar ou se questionar sobre o fato de o time nacional sequer ter cogitado um movimento semelhante. Exatamente por isso Thiago Silva foi ungido capitão, no principal programa jornalístico do país, sem a devida contextualização de que sua atividade de liderança estava cerceada nos gramados. O JN, a Folha e o restante do planeta já haviam escancarado o cinismo da Fifa. O espectador então que fizesse a conexão.

Protesto no braço dos outros é notícia. As braçadeiras se esgotaram rapidamente onde eram vendidas. Jogadores alemães, na hora da foto de pôster antes da estreia, levaram as mãos à boca, como forma de denunciar a censura. Enquanto a imagem brilhava nos sites brasileiros, no Bild era recebida com muito menos empolgação: "Isto é muito pouco!", bradava a manchete do site.

Dias depois, ainda mais sarcástico, o tabloide alemão anotava a hipocrisia do inglês Harry Kane, que abdicou do coração colorido da braçadeira proscrita, mas não de seu Rolex Daytona Rainbow (arco-íris, pegou?), de 600 mil euros.

O olhar crítico também aos jogadores, escasso no Brasil, é norma na Europa. O episódio da braçadeira fez um patrocinador romper contrato com a federação alemã, que anunciou em seguida um processo contra a Fifa. Pela mesma razão, cartolas da Dinamarca sugeriram deixar a entidade esportiva. Pressionada, a prefeitura de Londres baniu anúncios do Qatar no sistema de transporte público. Autoridades qatarianas ameaçaram rever investimentos na cidade. São donas da Harrods, do Shard e de 20% do aeroporto de Heathrow, para ficar no mais conhecido. A coisa vai longe.

Enquanto isso, no país do futebol de arquibancadas misóginas, homofóbicas e racistas, o Fantástico do dia da abertura da Copa conseguiu mostrar até o interior de uma mesquita, mas manteve distância segura dos temas espinhosos. Na Folha, em reportagem de apresentação do Mundial, assim como no editorial dedicado ao tema, outros personagens brasileiros foram incrivelmente poupados: os que se corromperam no processo de escolha do Qatar como sede. A última vez que o noticiário citou Ricardo Teixeira foi em reportagem publicada no marco de cem dias do apito inicial.

As omissões, no entanto, se diluem na concorrência de manada, na dinâmica do jornalismo digital, nas imposições dos sistemas de busca e nos orçamentos curtos de cobertura. Todos apresentam a estreia do Brasil com Neymar em forma, "no auge e sem lesões", como descrito pela Folha, e todos relatam agora o que é uma lesão ligamentar lateral no tornozelo. Será que ninguém vai fugir do pelotão e investigar como o estafe do jogador emplacou essa ideia de grande preparação? Ou contar quanto tempo ele retém a bola, suspeita de muitos comentaristas para o número alto de pancadas? Ou descobrir se, em algum momento, o time discutiu protestar ou se calar?

E que golaço!

A Primeira Página da Folha foi uma das poucas a não usar "golaço" para descrever o voo de Richarlison. A imprensa internacional se derreteu. "Sim, Brasil: é bem assim que nos lembramos de você", escreveu o britânico The Guardian. O ativismo social do atacante fez lembrar outros que se preocupavam com o próximo, como Sócrates. Em 1986, o Doutor disputou a Copa do México com uma faixa na cabeça e mensagens políticas. Estivesse em campo agora, certamente tomaria o cartão amarelo e entraria de novo para a história.

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