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Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

Discurso de Kamala Harris aponta vínculo de emoções individuais e mudança política

Resta ver se experiência de luto de Joe Biden o ajudará a enfrentar sectarismo e reunificar os EUA

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Em recente artigo publicado pela revista Science, um grupo de pesquisadores encabeçado por Eli Finkel, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos, comenta os riscos que o sectarismo representa para a democracia.

Os pesquisadores ressaltam as diferenças entre o sectarismo —atual fenômeno da polarização política— e os seus antecedentes na história daquele país, ao exemplo do que aconteceu durante a Guerra Civil e dos violentos protestos de 1968, alguns dos quais relacionados aos assassinatos do líder ativista Martin Luther King Jr. e do senador Bobby Kennedy, então concorrendo à indicação a candidato à Presidência pelo Partido Democrata.

Para os pesquisadores, um certo grau de polarização sempre foi importante à manutenção de um ambiente democrático minimamente saudável. Afinal, nem todos pensam da mesma maneira sobre temas iguais.

No sectarismo, porém, a discussão de ideias e propostas políticas aparenta ser o que menos importa, havendo sido substituída pela crença de que o jogo democrático não teria por finalidade o consenso, mas a sujeição do adversário.

Os pesquisadores ainda observam que o comportamento sectário se forma a partir da relação entre três tendências fundamentais: a alteridade, ou a tendência para percebermos o adversário como absolutamente estranho ao grupo; a aversão, ou a inclinação para enxergarmos o oponente com antipatia e desconfiança; e a moralização, isto é, a predisposição para enxergarmos a oposição como moralmente abjeta ou inquietante.

No entanto, os autores advertem: “Considerar o opositor como diferente ou mesmo como desagradável e imoral pode não ser problemático isoladamente. Mas, quando essas três tendências convergem, as perdas políticas ganham a proporção de ameaças existenciais que devem ser evitadas custe o que custar”.

Finkel e a sua equipe sugerem que algumas das causas do sectarismo norte-americano estão relacionadas à consolidação ideológica dos partidos políticos, resultante do alinhamento cada vez mais evidente entre demografia e identidade ideológica.

Embora, em um passado não muito distante, tendências progressistas e conservadoras tenham coexistido dentro de um mesmo partido, hoje a experiência é bem outra, com os democratas cada vez mais alinhados às demandas progressistas, na mesma proporção em que os republicanos se comportam como únicos detentores da agenda conservadora.

Entre os diversos fatores que contribuíram para que a situação chegasse a esse ponto, os pesquisadores comentam como os americanos passaram a habitar distintos ecossistemas de informação —fenômeno recentemente agravado pelo surgimento das redes sociais—, processo em curso desde 1987, a partir da supressão da “fairness doctrine” (doutrina da equidade), diretriz da Comissão Federal de Comunicação a requerer dos concessionários de mídia abordar temas polêmicos, de interesse público, com imparcialidade.

Eles também chamam a atenção para como a experiência da desigualdade econômica teria radicalizado a elite política do país. De acordo com a pesquisa, os políticos norte-americanos estariam cada vez mais dependentes de doações feitas por apoiadores extremistas. Aqui vale a pena ressaltar que o fervor sectário não seria propriedade de um único partido político, podendo ser igualmente observado entre republicanos e democratas.

Tanto na pesquisa quanto em entrevista à revista Scientific American de outubro, Eli Finkel comenta que a atual especulação sobre a identidade política das pessoas leva à suspeita das suas outras identidades sociais.

Nisto há exageros de ambos os lados. Os republicanos superestimam a proporção de democratas pertencentes às minorias LGBTQ+, enquanto os democratas sobrestimam o número de republicanos com renda anual igual ou superior a US$ 250 mil.

Finkel comenta que, para além dessas percepções equivocadas sobre a oposição, existiriam mais semelhanças entre as necessidades dos integrantes de cada grupo do que normalmente é possível imaginar.

Isso posto, em seu discurso de vitória eleitoral, Kamala Harris caracterizou o seu companheiro de chapa, Joe Biden, como um conciliador cujas experiências de perda firmaram-lhe o propósito de levar a nação a recuperar objetivos comuns.

Para mim, o que há de interessante no discurso da vice-presidente eleita é o reconhecimento de que a reconciliação política dos Estados Unidos haveria de passar por um processo semelhante ao luto vivenciado por Biden por ocasião das mortes da sua primeira esposa e da filha ainda pequena, bem como —mais recentemente— do falecimento do seu filho Beau Biden, uma das razões pelas quais ele teria desistido de concorrer à Presidência em 2016.

Uma hipótese não trabalhada no artigo encabeçado por Finkel é a de como as tendências que informam o comportamento sectário estariam amparadas em um forte sentimento de perda. Algo para o qual eu busco chamar a atenção desde os meus primeiros comentários sobre o brexit e a chegada de Donald Trump à Casa Branca, a ressaltar como a cristalização de perdas reais e simbólicas afetariam a nossa capacidade de agir de modo autônomo.

Ao estabelecer a relação entre a experiência privada do luto e a aparente habilidade do presidente eleito para reunificar o país, o discurso de Kamala Harris recupera a ideia de que existiria uma ligação entre as emoções vivenciadas individualmente e o modo como elas se refletem na expressão dos desejos por conservação ou mudanças no plano político.

Nesse cenário, pesa considerar que muitos americanos ainda amargam as consequências da crise econômica de 2008. Como se isso não fosse o bastante, veteranos e jovens ainda haverão de padecer das perdas deste ano de pandemia, algumas das quais devem exercer profundo impacto em suas vidas e se projetar por décadas.

Igualmente apelando para a relação entre a política e as emoções, o artigo de Darryl Pinckney para a revista The New York Review of Books descreve a situação americana como a de uma sociedade em surto: “As pessoas estão desesperadas para fazer alguma coisa, mesmo que seja algo destrutivo. Nós não corremos o risco de uma guerra civil, nós estamos à beira de um ataque de nervos”.

Resta-nos, portanto, aguardar por ver se a administração de Joe Biden fará jus ao discurso de Kamala Harris, sabendo colocar-se em posição de diagnosticar as feridas sociais e os inúmeros ressentimentos a necessitarem de ser habilmente administrados para que a nação americana consiga resgatar-se.

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