Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Ressentimento explica rejeição da nova direita ao feminismo

Livro discute retaliação a movimentos sociais e como ela é prejudicial às mulheres

Em 1991, a escritora Susan Faludi lançou "Backlash: The Undeclared War Against Women". Uma reflexão sobre as reações da sociedade norte-americana às principais conquistas feministas das décadas de 1970 e 1980; como a aprovação pelo Congresso da "Emenda da Igualdade de Direitos", em 1972, e a legalização do aborto pela Suprema Corte, em 1973.

Segundo a autora, o "backlash" —ou a retaliação de um grupo contra a crescente popularidade de um movimento político e social, como o feminismo— seria caracterizado por duas tendências subjacentes à superficial celebração da igualdade entre homens e mulheres.

A primeira, de que o feminismo seria culpado pelo mal-estar das mulheres na sociedade contemporânea. A segunda, de que se faz necessário conter o avanço feminino na política e no mercado de trabalho sob o pretexto de que esta seria a principal causa de maiores desajustes sociais como o colapso da família nuclear, o abandono afetivo de crianças e o aumento da criminalidade entre os jovens.

Deste modo, a celebração da independência feminina e a ideia de que o avanço de pautas feministas teria prejudicado as mulheres dividiram espaço nas manchetes dos principais jornais e das revistas da década de 1980. Afinal, parecia claro para todos —inclusive para vozes comprometidas com o próprio movimento feminista, como as escritoras Betty Friedan e Germaine Greer— que a maior liberdade conquistada pelas mulheres fora responsável pela insatisfação das mesmas.

Faludi argumenta, no entanto, que tal insatisfação não deporia contra o feminismo nem contra a capacidade da mulher de encarar os desafios resultantes das suas próprias conquistas. Ora, a insatisfação da mulher contemporânea apenas exprime a angústia natural sobre a reviravolta do nosso modo de vida e a organização social: esta sim, responsável pelo questionamento dos nossos mitos e de nossas crenças sobre o sexo feminino.

Disto proviria a necessidade de estarmos atentas ao fato de que, muitas vezes, argumentos antifeministas —ao exemplo da culpabilização das vítimas de estupro ou de violência doméstica— passam despercebidos tanto da maioria como de especialistas.

Ora, Faludi escreve que as duas tendências que compõem o "backlash" contra o feminismo não seriam expressões conscientes de forças conspiratórias ou impostas por um grupo sobre o outro. Logo, este tipo de retaliação ao feminismo, tanto por homens quanto por mulheres, atua em nossos inconscientes; como um desdobramento do ressentimento comum a todos os seres humanos.

O filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) define o ressentimento como o processo de internalização e acúmulo da agressividade sobre o qual não podemos atuar diretamente. Com o passar do tempo, esquecemos o objeto específico da nossa raiva acumulada e passamos a exercitá-la indiscriminadamente contra outros objetos e sobre nós mesmos.

Assim, diz-nos Faludi: “Um 'backlash' contra os direitos da mulher tem sucesso na medida em que parece não ter conotações políticas [...]. Ele é tanto mais poderoso quanto mais consegue transformar-se numa questão privada, penetrando na mente da mulher e torcendo a sua visão para dentro, até ela imaginar que a pressão está toda na sua cabeça, até ela começar a impor as regras do 'backlash' para si mesma”.

mulher fala no megafone e outras gritam palavras de ordem
Mulheres mobilizadas na campanha #elenão, contra o presidente eleito Jair Bolsonaro - Fernando Souza / AFP

Embora o livro seja um estudo sobre as atitudes da sociedade norte-americana do final do século passado em relação às mulheres, tanto o conceito de "backlash" como algumas das suas passagens sobre fenômenos sociais recentes se fazem relevantes para o entendimento de fatos políticos atuais: o desmantelamento de estruturas partidárias tradicionais e a ascensão de novas formas de conservadorismo.

Em um capítulo sobre o crescimento da nova direita na política dos Estados Unidos, Faludi define o movimento como uma expressão do ressentimento socioeconômico de uma parcela marginalizada da população composta, em sua maioria, por trabalhadores de classe média baixa cujos empregos foram ameaçados pela crise em setores tradicionais da indústria pesada.

Segundo a autora, em vez de representar um desdobramento ideológico do conservadorismo, cujo principal objetivo seria a preservação do status quo, o neoconservadorismo seria a reação contra o estado vigente das coisas por indivíduos que se sentem “frustrados em suas aspirações humanas mais básicas —o anseio de serem reconhecidos e valorizados pela sociedade em que vivem, [e] o desejo de encontrarem um solo firme em uma economia instável”.

Dito isto, Faludi nos explica que um dos motivos pelos quais a nova direita elegeu o feminismo como bode expiatório seria um reflexo da importância social do movimento nas últimas décadas. Afinal, diz-nos a autora, ao citar a cientista política Rosalind Pollack Petchesky, especialista em direitos sexuais e reprodutivos da mulher: "O movimento de liberação das mulheres na década de 1970 tornou-se a força mais dinâmica para a mudança social do país, uma das ameaças mais diretas, não apenas aos valores e interesses conservadores, mas também a importantes grupos cujo 'padrão de vida' é desafiado pelas ideias de liberação sexual".

Recomendo a leitura desse livro cujos tópicos podem nos servir de base para um estudo comparativo sobre as reações ao feminismo nos Estados Unidos e no Brasil; seja pela sociedade como um todo, seja por correntes da política neoconservadora recentemente adotada por esses países.

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