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Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

Nova onda da pandemia é vilanizar os jovens

Ao mesmo tempo, surgem iniciativas que buscam equacionar os riscos da Covid-19 e os do confinamento

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João ficou angustiado a tal ponto com o confinamento que começou a fazer xixi na cama. Ele tem 17 anos. Enzo, 16, de tão desesperado, resolveu mergulhar a mão em uma panela de óleo fervendo. Com depressão profunda, Luana, 14, se jogou da janela do seu apartamento, no quarto andar. Clara, 15, só pensava em se matar até que se atirou da laje da sua casa. As duas não morreram por pouco e seguem internadas.

Essas são histórias reais de famílias de diferentes classes sociais da Grande São Paulo, com nomes fictícios para preservar os adolescentes. São jovens que até março deste ano levavam uma vida normal, estavam bem emocionalmente ou com dificuldades contornáveis. Mas tornaram-se vítimas do isolamento social imposto pela Covid-19.

João, Enzo, Luana e Clara são exemplos de um número crescente de adolescentes para os quais essa é uma pandemia de depressão, ansiedade, síndrome do pânico, abuso de álcool, drogas e tentativas de suicídio. Os casos se acumulam a cada dia que, em vez de luz no fim do túnel, o que se veem são gráficos e mais gráficos aterrorizantes.

Mas debater esses dramas não tem dado muito ibope. Que vítimas?! A nova onda da pandemia, em tudo quanto é conversa de adulto, virtual e até mesmo presencial, é fazer dos jovens os grandes vilões da Covid-19: “Estão saindo!”; “Estão se reunindo em grupos!”; “Estão aglomerados!”; “Estão sem máscara!”; “Estão se beijando!”.

Meninos e meninas ganham ares de criminosos barra-pesada quando se descobre que participam de festas clandestinas, para as quais seguem, sem saber o endereço, em vans que passam por pontos informados nas redes sociais uma hora antes do evento.

Além de alardear esses fatos, o tribunal pandêmico julga o sentimento dos “rueiros”: “Não têm medo de morrer”; “Não se preocupam com ninguém”; “Não estão nem aí”.

Essas sentenças todas estão distantes do que observam psicólogos e psiquiatras que, ao longo da pandemia, passaram a ter a agenda tomada por consultas com adolescentes.

Aos médicos e terapeutas, eles relatam medo, angústia e preocupação. Estão desesperados com o confinamento, precisam sair, conversar e namorar. Mas, quando o fazem, em vez de um sentimento saudável de transgressão, o que vem é a culpa. É difícil não pensar que a baladinha pode ter um fim trágico para pessoas que amam. Se, por um lado, o rolezinho alivia a tensão do isolamento, por outro impõe o estresse de uma potencial contaminação. Bebidas e drogas ganham espaço para aplacar essa agonia e tornar possível uma curtição como se não houvesse amanhã.

Na contramão da patrulha que transforma vítimas em vilões, surgem iniciativas que buscam equacionar os riscos da Covid-19, que, sim, são graves, aos do confinamento. Aos poucos e apesar da subida de contaminação, ganha espaço a percepção de que as escolas devem entrar na lista de atividades essenciais e permanecerem abertas ainda que a pandemia recrudesça, a exemplo do que ocorre na segunda onda na Europa.

Na terça-feira (24), um decreto do Rio Grande do Sul retirou as restrições a aulas presenciais inclusive na fase vermelha do confinamento. Em São Paulo, a secretaria de Educação tenta sensibilizar o governador João Doria a seguir o mesmo caminho.

Nas redes sociais, circulam abaixo-assinados de pais e de pediatras pedindo a reabertura das escolas. São diversos os vídeos recentes com médicos alertando para as consequências do confinamento para a saúde mental de crianças e jovens e defendendo a necessidade de se retomar as atividades escolares presenciais. No Hospital das Clínicas de São Paulo, o Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência realiza nos dias 4 e 5 de dezembro um simpósio com profissionais da saúde e da educação para discutir como minimizar os transtornos emocionais da pandemia para a juventude.

Na contracorrente da vilanização de jovens, defende-se que todos devemos pensar em formas de ajudá-los a se sociabilizar com o menor risco possível. “É preciso conversar em família sobre os medos e os perigos. Os pais devem ajudar os filhos a criar grupos menores para encontros e todos têm de equilibrar a ideia de que é necessário se cuidar e, ao mesmo tempo, aceitar que, na vida, não existe nada 100% seguro”, diz Sandra Scivoletto, do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do HC.

Para a psiquiatra, o pior caminho é negar as necessidades da adolescência. “Se o isolamento é um mecanismo de tortura para qualquer ser humano, para o adolescente é ainda mais cruel. Ele está desenvolvendo sua personalidade, e a convivência com o grupo é fundamental. A falta do contato pode ter consequências graves.” Melhor, portanto, lembrar do João, do Enzo, da Luana e da Clara antes de jogar pedra na Geni.

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