É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
Nova York volta a atrair clichês de pestilência descritos como 'ambientalismo moral'
É cedo para prever a fuga para o subúrbio e o retorno à vida sobre quatro rodas
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
Nova York, com 8,3 milhões de habitantes, é o epicentro da pandemia do coronavírus.
Registrou, até 29 de abril, 12.509 óbitos —assombrosos 22% de todas as mortes provocadas pela Covid-19 no país de 330 milhões de habitantes.
Mesmo com a queda do número de infecções e de mortes atribuídas à pandemia, a cidade deve prolongar a ordem de quarentena além de 15 de maio.
Cidades do norte do estado de Nova York, com uma fração dos casos ocorridos na cidade, devem começar a reabrir gradualmente mais cedo, sob duas condições impostas pelo governador Andrew Cuomo: aumento da capacidade de testar a população e queda no número de internações por 14 dias seguidos.
O macabro protagonismo da cidade com maior densidade populacional do país tem inspirado a volta de clichês viscerais sobre a pestilência urbana.
Mas por que cidades ainda mais verticais como Singapura ou Seul combateram a pandemia com muito mais eficácia? Por que o índice de infecção por coronavírus é alto em regiões do sul dos EUA com menor densidade?
O preconceito contra a densidade urbana neste país de vastidão continental se formou no meio do século 19, com a industrialização, e criou uma cultura de desconfiança que o historiador Alexander von Hoffman descreveu como ambientalismo moral.
É a ideia de que a aglomeração humana agrava epidemias, seja de doenças ou de crime. O problema não seria a desigualdade que produz favelização.
De fato, até a criação de parques urbanos nos Estados Unidos foi distinta da que inspirou os majestosos parques urbanos europeus.
O urbanista Samuel Kling, de Chicago, lembrou num artigo recente que o Central Park foi desenhado para que as massas de trabalhadoras observassem a elite passeando, e não para promover acesso a atividades ao ar livre. Por isso, foi entrecortado por calçadas.
Ou seja, era uma experiência civilizadora e reflexiva, não um local para esportes como hoje se vê.
Dezenas de agostos atrás, quando morávamos num quarto e sala em Manhattan, perto de parque nenhum, fui acometida de um temporário ataque de idílio rural.
Peguei meu dilapidado Chevette e rumei norte, num domingo. Criança no banco de trás, e no colo um mapa com o anúncio do andar térreo de uma casa para alugar no pitoresco vilarejo de Dobbs Ferry, à beira do rio Hudson.
Por ser uma área relativamente afluente, haveria lá uma escola pública de qualidade, sustentada com impostos municipais, o sistema que perpetua a desigualdade do ensino público americano.
A casa branca, em estilo colonial, tinha uma bandeira americana fincada no gramado na frente. Tudo deserto. Se me deitasse no meio da rua principal, naquela tarde, dificilmente seria atropelada.
Peguei o primeiro retorno e voltei para a cacofonia da cultura que não pergunta "sabe com quem está falando?", mas sim "quem você pensa que é?".
Nova York vai reabrir e, como outras metrópoles, não será a mesma enquanto um dos assassinos mais letais em um século não for encarcerado, seja por uma vacina ou mutação.
Mas é cedo para prever a fuga para o subúrbio, a volta à vida sobre quatro rodas.
A placidez estéril daquela tarde na deserta Dobbs Ferry fez desfilar em segundos, na minha memória, os subsolos apertados onde havia ficado a metros de Miles Davis, as galerias dos museus, a escuridão aconchegante dos teatros.
Densidade não é destino. É oportunidade de transformação.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters