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É jornalista e vive em Nova York desde 1985. Foi correspondente da TV Globo, da TV Cultura e do canal GNT, além de colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.

Pandemia e radicalização política agravam isolamento em guetos de informação

Detecto em conversas informais sobre qualquer assunto frases que soam originadas em mensagens de 'zap'

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Saldo de viagem: uma infecção leve de Covid; duas tempestades épicas com apagões; um número obsceno de empadinhas; 20 dias conversando e nadando com as crianças que a pandemia afastou de mim.

Minha ausência mais longa do Brasil chegou ao fim com sucesso, apesar do encontro com o vírus que passei dois anos evitando em Manhattan.

Propaganda do aplicativo de mensagens WhatsApp em Mumbai, na Índia - Francis Mascarenhas - 26.ago.21/Reuters

Eu perguntava que efeito terá tido o isolamento social entre parentes e amigos. Viver como expatriada é aceitar algum grau de isolamento, que não deve ser confundido com solidão.

Mas outro isolamento parece ter se formado na confluência da pandemia com a explosão de desinformação motivada por radicalização política no Brasil.

Desta vez, compreendi que não compartilho mais uma língua franca de fatos com pessoas que conheço há décadas ou que vi crescer. Ficou claro, neste milênio, que o consumo de informação digital foi segregando o público em lastimáveis guetos de interesses.

Não se trata de nostalgia pela hierarquia editorial. É apenas a constatação de que o ecossistema de realidade compartilhada não evoluiu ainda para outro em que a higiene da informação prevalece, e essa nova atividade —desmentir notícias falsas— não atinge o público necessário.

Detecto em conversas informais sobre qualquer assunto frases que soam originadas em mensagens de "zap". Ficções sobre as vacinas transmitidas nessas câmaras de eco são repetidas por pessoas com muito mais refinamento do que eu para combinar o vinho com a entrada de peixe.

Recolho clichês o bastante, como "cultura de cancelamento", este aplicado a quem pensa com independência, que passei a me sentir cercada de Zeligs. Leonard Zelig é o personagem do filme de Woody Allen de 1983, um camaleão que vai se transformando em personalidades à sua volta. Se tivesse sido criado nesta década, Zelig viveria numa nuvem de "zaps" de influenciadores.

É estranho notar profissionais educados cuja dieta de informação depende de serviços de clipping que decidem por eles o que é relevante.

Em Nova York, só tinha tido experiência semelhante e esporádica com espectadores da Fox News. Existe, claro, todo um país que não frequento, o que diz acreditar que Donald Trump ainda é presidente. Mas lembro o comentário de um famoso ex-correspondente de guerra e âncora de telejornal que entrevistei nos anos 1990: "Nós, americanos, não sabemos o quanto vocês são bem informados sobre o mundo".

O WhatsApp não emplacou por lá como aqui. Discutir trabalho, mandar press releases ou abordar quase estranhos pelo "zap" lá é falta de profissionalismo.

Nunca tive vida social confinada a jornalistas, mas, mesmo entre amigos mais distraídos que não saberiam dizer quem governa a Ucrânia, perdura uma praça mental em que o jornalismo ainda é fonte de fatos, apesar da balcanização editorial em toda parte.

Todas as viagens anuais ao Brasil me faziam lembrar de uma passagem do romance "O Fauno de Mármore", de Nathaniel Hawthorne, pregada na parede do escritório de um velho amigo que escolheu viver no Rio: "Entre dois países, não temos nenhum, ou só aquele pequeno espaço entre os dois, em que, no final, repousamos nossos ossos descontentes".

Como será preservar aquele pequeno território emocional de repouso se temos que viajar do país estrangeiro a uma distopia cognitiva orquestrada por Mark Zuckerberg e os oligarcas dos algoritmos?

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