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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Após anos, 'A Vida pela Frente'

Sucesso em 1975, romance magistral de Émile Ajar enfim é lançado no Brasil

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O romance causou sensação na França em 1975. Primeiro, porque é uma daquelas obras-primas que se reconhecem de imediato. Vai ao fundo das coisas, sem abandonar nunca a leveza; é um milagre de humor e de tragédia ao mesmo tempo.

Em segundo lugar, havia o mistério. “A Vida pela Frente” daria a seu autor, Émile Ajar, o prêmio Goncourt daquele ano. Mas quem era Émile Ajar? Ele não aparecia, não dava entrevistas, e logo surgiu a hipótese de que seria o pseudônimo de algum autor famoso.

De fato. Tratava-se de Romain Gary, que já havia sido premiado com o Goncourt em 1956. Pela regra, ninguém poderia ganhar o prêmio duas vezes; Gary (1914-1980) deixou em seus papéis póstumos a confissão da artimanha.

Poderia ser apenas um caso curioso no sempre hiperexcitado ambiente intelectual francês. Mas esse disfarce se inscreve perfeitamente na realidade que o romance descreve.

É uma realidade de prostitutas africanas, cafetões iugoslavos, traficantes argelinos, num bairro paupérrimo de Paris.

Lá, quase todo mundo tem identidade falsa —a começar pelo narrador, o pequeno Mohammed (ou Momo, como prefere ser chamado), que não sabe nem mesmo a idade que tem.

Quem cuida dele é uma ex-prostituta judia, Madame Rosa, que 30 anos antes se livrara dos nazistas também por meio de documentos forjados.

Mal se aguentando com seus 95 quilos, ela organizou uma creche clandestina para os filhos das prostitutas da região. Algumas aparecem no fim de semana. Outras, como a mãe de Mohammed, sumiram de vez.

Há detalhes de arrepiar. Um cafetão obriga sua melhor prostituta a trabalhar dez dias no Marrocos; se ela se recusar, ele denunciará Madame Rosa à polícia. E, pela lei francesa, a filha da prostituta terá de ser conduzida a um orfanato público.

Nada pior, para os personagens do livro, do que cair nessa rede impessoal de proteção. Cada vez mais doente, Madame Rosa tem pavor de ser levada a um hospital, onde podem prolongar sua vida indefinidamente, com tratamentos dolorosos. Com dez anos, ou pouco mais que isso, Momo se dedica a impedir que isso aconteça.

Difícil imaginar situação mais triste para um romance. Seria Dostoiévski nos seus mais desesperados momentos. Mas “A Vida pela Frente” é outra coisa —é um encanto.

O grande feito de Romain Gary é contar toda a história pelos olhos de uma criança, que ao mesmo tempo vê a gravidade do que se passa e interpreta as coisas com a naturalidade de seu desentendimento.

Isso rende momentos muito engraçados —e serve como instrumento para o autor dizer verdades que soariam forçadas se apresentadas a sério.

Momo, que é árabe, sai pela rua com um coleguinha negro da creche, bem menor, para ganhar uns trocados. Eis como ele explica sua estratégia, na ótima tradução de André Telles para a editora Todavia.

“Também aproveitei o Banania lá em casa para fazer um ganho nas lojas. Eu deixava ele sozinho para que ele desarmasse e provocasse uma aglomeração à sua volta, por causa dos sentimentos enternecedores e comovedores que ele inspirava. Quando eles têm quatro, cinco anos, os negros são muito bem tolerados.”

Sobre o nazismo, Momo entende mais ou menos o que se passou —e traduz isso nos termos de sua própria experiência. O que era o campo de concentração de Auschwitz? Era uma espécie de “lar judeu” criado pelos alemães. Ele pensa nos orfanatos do Estado.

Madame Rosa teme coisa parecida. Um médico judeu, o doutor Katz, insiste em levá-la a um hospital público. Momo não interrompe a conversa.

“Se os judeus começassem a se denunciar uns aos outros, não seria eu que ia me intrometer. Estou cagando pros judeus, eles são pessoas como todo mundo.”

Essa reapropriação de um clichê antirracista, pela voz de um discriminado árabe, diz volumes sobre a igualdade de direitos num mundo em que a desigualdade persiste.

O livro poderia ter sido escrito ontem —africanos, judeus, árabes e transexuais continuam “se virando” entre a invisibilidade e a perseguição.

Ao contrário de tanta literatura “periférica”, porém, não há em “A Vida pela Frente” aquela espécie de exibicionismo da marginalidade, tão comum no Brasil desde João Antonio. Por aqui, os autores parecem sempre estar esfregando a realidade na cara dos leitores: “vocês não sabem de nada, seus riquinhos”.

Momo sabe pouco, e sabe mais. Imagina-se como uma espécie de cafetão, que “sustenta” Madame Rosa. É verdade —na medida mesma em que é um equívoco de criança. A experiência mais profunda é traduzida como se vista pela primeira vez; isso, acho, é literatura.

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