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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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“Caro senhor”, diz a carta, “meu plano era ficar por um ano no sul da França, morando com um amigo. [...] Mas ele se tornou um louco furioso”.

O texto continua. “Tive de enfrentar, durante um mês, o medo de que sobreviesse algum acidente fatal ou trágico… O senhor pode bem ver que a boa sorte não tem me abandonado nestes últimos anos.” 

A caligrafia é limpa, com cada letra bem separada da outra, e um largo espaço entre as linhas. As letras maiúsculas são como que desenhadas, sem revelar muita firmeza na mão, mas as palavras mais longas parecem vir de um jato. 

A assinatura é clara, curta, desapertada, quase de aluno da escola elementar —e se destaca no papel pardo do manuscrito: Paul Gauguin. Quanto ao amigo enlouquecido, sabemos bem que é Van Gogh.

O documento pertence à coleção do brasileiro Pedro Corrêa Lago, e está reproduzido num livro de capa dura, grosso mas de formato não muito grande, que a editora Taschen acaba de publicar em inglês. A tradução brasileira chega logo.

Página depois de página, “The Magic of Handwriting” (organização de Christine Nelson) traz para o leitor mais prodígios e surpresas do que um show de David Copperfield. Talvez porque seja difícil de acreditar no que se tem diante dos olhos. 

A história de Gauguin e Van Gogh, por exemplo, é conhecida. O susto vem de se entrar em contato com um documento real, em primeira mão, escrito no tempo mesmo em que as coisas aconteciam. 

A loucura de Van Gogh e as brigas de Gauguin não eram ainda famosas; não eram “históricas” naquele momento. O leitor daquela carta, cujo nome não ficou registrado, estava apenas tendo notícias  de um conhecido seu.

Aquele pedaço de papel significava pouco em janeiro de 1889. Hoje, parece quase gritar de tanta importância e interesse para a história da arte.

Veja-se outro bilhetinho, sem relevância nenhuma, escrito numa letra que parece um modelo para escolas de caligrafia. 

“Querido tio, ofereço-lhe muitas congratulações afetuosas pela passagem de seu aniversário —muitas, de muito coração—, por toda sua gentileza comigo, e é um grande prazer para mim poder escrever, neste ano, para meu tio.”

A autora da carta é uma criança de sete anos, orgulhosa de seu feito: trata-se da futura rainha Vitória.

Ainda uma vez, o valor de uma carta dessas não se mede só pelo fato de que viria a ser muito célebre quem a escreveu. 

O mais extraordinário é que, naquele 16 de agosto de 1826, a menina que caprichava na letra não sabia que viria a se tornar a rainha Vitória que nós conhecemos.

Para nós, ela não passa de uma tartaruga vestida de preto, imobilizada num livro de história ou num selo de correio. Mas aqui, nesta carta, ela é uma criança, vencendo a tarefa que lhe foi imposta naquele dia. Desconhece o próprio futuro que terá; não está presa na história, está jogada diante do mundo.

A coleção de Pedro Corrêa do Lago não é uma daquelas muitas acumulações de preciosidades meio sem sentido a que tantos, ricos ou pobres, se dedicam: chaveiros de plástico, ovos de Fabergé, tampinhas de garrafa, cristais de Lalique. 

O que importa, aqui, não é tanto o objeto em si mesmo. Não vemos nessas cartas, desenhos, bilhetes, anotações, o “valor”, a raridade, o “achado”. O que vemos é a vida.

Garatujas quase casuais compõem uma lista de quatro ou cinco nomes. Quem escreve é Napoleão Bonaparte; está fazendo a lista dos bispos italianos que irá demitir do posto.

Um menino de 12 anos convida o pai para um jogo de beisebol, num inglês rudimentar. É Ernest Hemingway.

Partituras? Há um tumulto de erros e emoções numa página rabiscadíssima de Puccini; manchas de água avançam pelas bordas do original de “Chega de Saudade”, de Tom Jobim. Um recibo de pagamentos, assinado com mão de gigante, é um dos últimos exemplares da letra de Beethoven.

Cada página do livro é uma descoberta espantosa. Com as particularidades intraduzíveis, corporais e humaníssimas da caligrafia, da mão, do gesto e da rasura, eis que Maria Antonieta e Henrique 8º, Trotsky e Lucrécia Borgia, Isaac Newton e Bolívar ressuscitam: “Estou vivo, estou aqui, me responda”. Fecho o livro; começa a escurecer, neste começo de novembro, e fico em silêncio.

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