CRÍTICA
Visão acadêmica empobrece cartas de Ernest Hemingway
Ernest Hemingway não se sentia à vontade com a ideia da posteridade e considerava o fato de escrever cartas algo não transcendente: "Escrevo cartas porque é divertido escrever cartas. Mas não para a posteridade. Afinal, que diabos é a posteridade? Soa como se você estivesse lá sem fazer absolutamente nada."
Além disso, o autor sabia que sua intimidade estava em xeque –até seus familiares mandavam suas cartas a jornais e revistas. Cônscio de que desperdiçava energia, "divertia-se", mas abominava a obrigação de se corresponder: "escrever cartas à mão pela manhã, quando se deve trabalhar ou se exercitar, é a forma mais rápida que conheço para um escritor destruir a si mesmo".
A assinatura lhe pesava. De um lado, a necessidade de dizer "não" gritava alto. Todavia dizer "não" para ele significava se aproximar ainda mais do mundo. Tinha outra opção: pegar a espingarda de caçar pombos e explodir o monstro que o encurralava. Fez as duas coisas de uma vez.
AFP | ||
O escritor norte-americano Ernest Hemingway posa para foto em Pamplona (Espanha), nos anos 1950 |
Sandra Spanier e Robert W.Trogdon, organizadores de "As Cartas de Hemingway - 1907-1922", foram muito cuidadosos ao trazer mais um pouco dos restos mortais do escritor à tona. O volume conta duas introduções, um prefácio e um posfácio com uma infinidade de fontes, notas e guias de leituras somados a mapas e listas de missivistas, mais um calendário de cartas e fotos. A documentação perfaz quase 90 páginas do livro. Spanier e Trogdon foram cuidadosos demais, a meu ver.
Hemingway não imaginaria que as cartinhas enviadas a seu "querido papai" se transformariam em objeto de desejo de acadêmicos e taradinhos de rodapé: "Querido papai. Fomos colher morangos e conseguimos o suficiente para fazer três tortas pequenas"–segue nota minuciosa explicando circunstância, data e local. Hemingway tinha sete anos.
Seguindo a cronologia, temos as cartas do autor adolescente, que se esforça para ser o orgulho selvagem do papai, assim o jovem comemora o fato de ter nocauteado o campeão de boxe da escola, desce o rio Illinois numa canoa e administra a propriedade da família em Michigan.
FILÉ-MIGNON
Cinco anos depois, o leitor encontrará Hemingway recém-casado chegando a Paris. Desse período, destacam-se as cartas ao "padrinho" Sherwood Anderson. Chegamos supostamente ao filé-mignon, quando o autor trava os primeiros contatos com Gertrude Stein, e então o livro acaba. O melhor da "lost generation" fica para o próximo volume.
Spainer e Trogdon garantem pistas do autor de "O Velho e o Mar". Se quisermos encontrar as digitais do gigante nos primeiros morangos colhidos ou nas cartas trocadas com Pound e Stein, também acharemos. Mais do que pistas, Hemingway deixava sua assinatura por onde passava. Sob esse aspecto, a publicação das cartas soa redundante.
O leitor comum, que não é acadêmico, ganharia muito mais se fosse direto à fonte, aos livros do grande autor que enfiou dois balaços no palato porque –creio– não aguentava tanta cupidez e parasitismo em torno de uma vida que não mais lhe pertencia.
MARCELO MIRISOLA é autor de "O Herói Devolvido" (34) e "Charque" (Barcarolla)
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