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Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Em 'O Gambito da Rainha', desamor e dependência complicam a trama

O xadrez atinge um ponto fraco da personalidade masculina, que é o da vaidade intelectual

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A série “O Gambito da Rainha” (Netflix) virou fenômeno, acho que por razões muito diversas. A primeira, claro, é que anda faltando o que ver. Na pandemia, a demanda superou muito a oferta, e fora “Twin Peaks” e “The Crown”, os altos e baixos de Elizabeth Harmon, a enxadrista órfã da série, são o que há de melhor para ver na televisão.

Quase desisti depois do primeiro episódio; cenas de crianças solitárias em creches sinistras eu acho apelação.

Mas a coisa engrena. Naturalmente tudo é previsível no enredo, e isso até não me faz muito mal. Uma hora Elizabeth perde o jogo, outra hora ela ganha, e o diretor Scott Frank sabe mobilizar nossa torcida.

Mas o verdadeiro jogo de “O Gambito da Rainha”, e o que mais prende a atenção, é menos o xadrez e muito mais o sexo, a sedução feminina e a bobeira dos homens.

A atriz Anya Taylor-Joy, que era uma americana irritante na série “Peaky Blinders”, se transforma aqui numa personagem hipnótica, meio bruxa, meio criança.

Nunca sabemos exatamente o que pensar dela. Os olhos muito grandes a tornam ao mesmo tempo assustadora e assustada. Não existem fantasmas na série; mas ela tem visões quando fica sozinha, à noite, no quarto.

Com figurino assinado por Gabriele Binder, “O Gambito da Rainha” eleva a moda dos anos 1960 a uma altíssima potência. Ainda aqui, a ambiguidade domina o jogo. Na década anterior, a feminilidade se exaltava nas saias rodadas, cinturas finíssimas e luvas até o cotovelo que marcaram o “new look” de Dior.

Na primeira metade da década de 1960, a coisa mudou: as roupas femininas ficaram mais curtas e quadradinhas, cortaram-se cabelos e se abaixaram os saltos de sapato.

A ideia, com certeza, era investir num estilo mais “prático”. A perversidade da coisa é que, ao mesmo tempo em que se defendia uma mulher mais profissional e moderna, apostou-se fortemente na figura da “menina comportada”, sem curvas, como uma colegial. Mas a maquiagem de gatinho nos olhos vinha com outras intenções.

E assim temos Elizabeth Harmon, inteligentíssima e séria, aventurando-se no mundo masculino dos campeonatos de xadrez. Ela aparece usando roupas espetaculares, mas sem a menor “mulherice”; é fria.

À sua volta, reúnem-se admiradores e gênios adolescentes, cuja incompetência para o namoro só se compara com a habilidade que possuem na manipulação das suas peças. Nada mais simbólico do que a sempre esperada cena em que derrubam o rei ao fim do jogo, admitindo sua derrota frente àquela Circe das armadilhas táticas e dissimulações assassinas.

O xadrez atinge um ponto fraco da personalidade masculina, que é o da vaidade intelectual. Não há mulher que não tenha reclamado do homem que, perdido no trânsito, se recusa a pedir informações. No mundo machista, ele sempre “sabe das coisas”.

Mas todo babaca tem escondida, dentro de si, a capacidade para a torcida e para a admiração. Mesmo fazendo gato e sapato de sua corte, a “rainha” Elizabeth contará com ajuda e alegria nos momentos de maior desafio.

Contardo Calligaris, aqui na Ilustrada, gostou de “O Gambito da Rainha” porque a série o fez “sorrir para a vida sem renunciar a nada (e sem esconder nada) do que faz da vida uma experiência fundamentalmente trágica”.

Para mim, o efeito foi diferente. A história de Elizabeth Harmon me pareceu a luta de uma pessoa para se tornar completamente humana.

Tratava-se de um bichinho estranho no orfanato, onde a política era ministrar diariamente pílulas tranquilizantes para a criançada. Elizabeth já tinha um trauma emocional e tanto pelas costas.

O xadrez, é claro, não elimina as emoções de ninguém. O raciocínio nem sempre consegue predominar sobre a inibição, o medo, a pressa ou a autoconfiança excessiva numa disputa.

Bem ou mal, a força de Elizabeth no jogo lhe dá condições de sobreviver e de aparentemente não se importar demais com a falta de amor —e de lugar— que a esperam no mundo.

Ela seria uma máquina, se não tivesse também suas tremendas esparrelas alcoólicas. Até aí, estamos em terreno conhecido: defeitos, vícios, inseguranças “humanizam” a jogadora infalível.

Mas “O Gambito da Rainha” vai além. Tropeços e humilhações, por si mesmos, não humanizam ninguém. Um robô avariado continua sendo um robô. O que humaniza uma pessoa são as outras pessoas —e a cena final da série, que não vou contar, marca o final feliz desse jogo dificílimo.

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