Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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'Designated Survivor' traça os limites de uma aposta no extremismo

Futuro eleitoral talvez se garanta menos com os 'gabinetes do ódio' e mais com os 'pacotes de bondade'

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Com algumas séries de TV —penso em “Peaky Blinders”—, não resisto: vejo todos os capítulos, um por dia, até o final.

Não mais do que um. Mantenho a sanidade nesse aspecto. Como em tudo, o prazer depende de alguma renúncia e, especialmente, da rotina. A horinha do seriado tem de ser a mesma; precisa ser algo como um prêmio, ainda que nosso comportamento não o mereça.

“Peaky Blinders”, como acho que já comentei aqui, tinha seus defeitos e as temporadas variaram bastante de qualidade. Foi boa o bastante para que eu não desistisse no meio.

Mesmo assim, quando a série finalmente acabou (será?), dei graças a Deus. Precisava de um descanso de tantas navalhadas, porres de gim e atracadouros sórdidos na escuridão industrial inglesa de 1920.

Depois de algumas semanas a esmo, tive a sorte de pegar “Designated Survivor” já no meio. Desconfio que me cansaria muito se tivesse acompanhado desde o início as atividades de Tom Kirkman (Kiefer Sutherland), o obscuro ministro de Desenvolvimento Urbano que, de uma hora para outra, vira presidente dos Estados Unidos.

Uma grande explosão tinha acabado com todos os que o antecediam na linha sucessória. Sem ser filiado a partido nenhum, Kirkman é um americano decente, sem experiência com as tramoias de Washington, cioso de manter os compromissos que assume com sensatez e espírito público.

É bom para variar. Um pouco como “The West Wing”, acho que a série dá alguma ideia de como funciona o Executivo americano, o que faz cada tipo de assessor —o porta-voz, o “chief of staff”, o pessoal da segurança interna— e quais os problemas que caem na mesa do presidente.

Tudo seria mais convincente se os autores da série não precisassem recorrer a uma premissa “estratégica”, por assim dizer.

Kirkman enfrenta interesses nojentos da indústria farmacêutica, dos grupos de supremacia branca, dos planos de saúde privados. São, evidentemente, aqueles representados pela direita republicana.

Ilustração de porta amarela com uma placa em que há um coração no lado esquerdo. A parede em volta da porta é de madeira e há um aparador de cada lado com dois vasos em cada um.
André Stefanini/Folhapress

O personagem que ocupa a Presidência tem tudo para pertencer ao Partido Democrata. Mas é claro que a série não poderia mostrá-lo como um Obama ou um Biden melhorado: pareceria pura propaganda política.

Apesar do seu truque “neutralista”, a série da Netflix ensina um bocado de coisas. Há alguns trapalhões na equipe do presidente americano, mas impressiona a quantidade de recursos, materiais, humanos e tecnológicos, à sua disposição.

O grau de eficiência geral talvez seja exagerado, num roteiro que não pode perder tempo; mas é que também se carrega a mão na quantidade de emergências excruciantes em cada episódio.

Um detalhe, nas rápidas discussões políticas de “Designated Survivor”, me fez pensar sobre Trump e Bolsonaro. Ponho aqui como simples hipótese.

Kiefer Sutherland sentado diante de uma escrivaninha, com uma bandeira ao fundo
Kiefer Sutherland como Tom Kirkman em 'Designated Survivor' - Netflix

O presidente Kirkman tem uma cunhada que é transexual. Prometeu levá-la a um comício em Nova York: não era má ideia, porque por lá isso daria votos. Mudam os planos de viagem, e eles vão parar no Texas.

A marqueteira Lorraine Zimmer (Julie White, excelente) põe as mãos na cabeça. No Texas, uma transexual no palanque prejudicaria qualquer candidatura.

Seu raciocínio é o seguinte: o eleitorado tolerante não sairá de casa para votar num candidato pró-LGBTQ. Mas o eleitorado radical sai de casa para votar contra um candidato assim.

Minha hipótese seria a seguinte. Em países onde o voto é facultativo, apostar no extremismo pode ser bom negócio. Você não precisa da maioria absoluta dos cidadãos. Uns 25% ou 30% mobilizados podem dar a maioria no sistema distrital, garantir o total de votos num estado e decidir o Colégio Eleitoral americano.

A estratégia de Bolsonaro vinha sendo calcada nos gurus da extrema direita americana. Funciona nos seus namoros com o golpismo —invadir o STF e o Congresso, por exemplo. Com isso aparentemente afastado do horizonte, imitar Trump começa a fazer menos sentido.

Ele se elegeu, provavelmente, de modo acidental. Os partidos de oposição ao PT estavam desacreditados; houve a facada; o país entrou em surto; a caixa de Pandora se abriu, e muitíssimos demônios continuam à solta.

Mas o voto obrigatório prescinde de uma militância extremada. Depende mais do desempenho que da ideologia. Pode ser que, como sempre, eu esteja errado.

Mas o futuro eleitoral de nossas aberrações talvez se garanta menos com os “gabinetes do ódio” e mais com os “pacotes de bondade” que o Tesouro público possa oferecer.

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