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Jornalista de ciência e ambiente, autor de “Psiconautas - Viagens com a Ciência Psicodélica Brasileira” (ed. Fósforo)

Rififi na medicina de evidência

Peter Gotzsche termina expulso da Cochrane, instituição empenhada em dar solidez estatística à prática clínica que ajudou a fundar

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Topei com o dinamarquês Peter Gotzsche em Chicago, há 14 anos, num congresso de editores de periódicos de medicina. Sua coragem em denunciar as sacrossantas literatura médica e revisão por pares (“peer review”) soava impressionante.
 
“Revisões sistemáticas de remédios não deveriam ser financiadas pela indústria. Se forem, não se deveria confiar nelas”, disparou então. Ele se referia ao padrão de ouro dos artigos sobre saúde, a reunião de dados estatísticos de muitos artigos sobre eficácia de tratamentos para concluir o que de fato funciona –ou não.

Peter Gotzsche ajudou a criar Cochrane em 1993 - Politiken/DK

Gotzsche foi um pioneiro e paladino do método, que deu origem à voga da medicina baseada em evidências, tida como o melhor guia da prática clínica em consultórios e hospitais. Em poucas palavras, só prescrever e aplicar aquilo que tivesse eficácia estatisticamente comprovada.
 
Esse ideal resultou na formação de uma rede internacional de pesquisadores e médicos decididos a implementar o primado das evidências, a Colaboração Cochrane. Leio agora na revista digital Undark reportagem de Daniel Kolitz contando como Gotzsche terminou expulso da organização que ajudou a criar em 1993.
 
O rififi tem muito a ver com o excesso de franqueza do dinamarquês, da qual se pode ter um aperitivo na entrevista realizada por Cláudia Collucci em 2016. Ele acabava de lançar no Brasil o livro “Medicamentos Mortais e Crime Organizado – Como a indústria farmacêutica corrompeu a assistência médica”.
 
O próprio Gotzsche deu sua versão noutro livro, “Death of a Whistleblower and Cochrane’s Moral Collapse” (morte de um denunciante e o colapso moral da Cochrane). Não é uma história bonita.
 
O dinamarquês e outros críticos da Cochrane consideram que a organização idealista se transformou numa empresa mais preocupada em valorizar a marca e vender serviços do que em manter a marcação cerrada sobre a medicina contemporânea. A guinada teve início em 2012, com a contratação de Mark Wilson para dirigir a entidade.
 
Wilson não tem a formação acadêmica biomédica até então comum aos integrantes da Cochrane, que em sua gestão sumiu com o termo “colaboração” do nome oficial. Ele vinha da Federação Internacional da Cruz Vermelha e imprimiu um estilo gerencial centralizador à instituição médica.
 
Segundo dissidentes, a nova administração erodiu a legitimidade das revisões e meta-análises da Cochrane ao fazer concessões para a indústria farmacêutica. Independência, transparência, objetividade, luta contra conflitos de interesse –todos os ideais do movimento iconoclasta passaram a pesar menos e menos sob o tacão empresarial, acusam.
 
Gotzsche e seu estilo, no entanto, também têm seus adversários. Afirmam que seu culto fanático da estatística desconsidera as nuances da clínica e as variações entre pacientes de carne e osso.
 
Depois de atacar a massificação das mamografias e os medicamentos psiquiátricos, ele investiu contra a vacina anti-HPV. Tornou-se, ironicamente, um herói do movimento obscurantista antivacinas, fama da qual ele no presente tenta se livrar, narra Kolitz na Undark.
 
É lamentável ver a Cochrane, uma iniciativa racional e generosa, acabar abalada pela predominância de egos e interesses comerciais.

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