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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Descrição de chapéu Cinema

'Judas e o Messias Negro' e 'Quo Vadis, Aida?' retratam o colapso da política

Filmes, que foram destaque no Oscar 2021, mostram degeneração da convivência civil, que dá lugar à força homicida

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São filmes diversos no tempo e no espaço, na estética e no escopo. “Judas e o Messias Negro” encena o choque entre militantes negros e o poder branco nos Estados Unidos dos anos 1960. “Quo Vadis, Aida?” mostra uma chacina na Bósnia. Mas algo os aproxima: o colapso da política.

Os filmes falam da degeneração da convivência civil, que dá lugar à força homicida. Embora situados do passado, ambos se nutrem de crises do presente —o racismo e a resposta do ativismo negro nos
Estados Unidos; o destino da minoria muçulmana e dos refugiados na Europa cristã.

O traidor do título de “Judas e o Messias Negro” é um ladrão pé de chinelo, a quem a polícia paga para se infiltrar no Partido dos Panteras Negras e incriminar seus integrantes. “Messias negro” é como J. Edgar Hoover, o sátrapa do FBI, se refere ao carismático líder do partido, Fred Hampton.

Publicada neste sábado, 22 de maio de 2021 - Bruna Barros/Folhapress

Não fica no título, atravessando o filme todo, a equivalência entre um dedo-duro nojento, William O’Neal (Lakeith Stanfield), e um político da fibra de Hampton (Daniel Kaluuya). Histórica e politicamente, seria nivelar Lula a um Palocci, a um João Santana desses.

No plano dramático, a equiparação faz sentido porque “Judas e o Messias Negro” às vezes tende mais para thriller que para filme político. Ele só pode ser totalmente entendido no contexto crispado dos
anos 1960, na dinâmica da ação radical contra o racismo.

Quem dá prumo ao pêndulo entre aventura e política é Daniel Kaluuya, que ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante. Eletrizante, o seu Hampton está à altura da figura real, um orador que, na garra dos seus 20 anos, faiscava —vale a pena ver na internet os discursos dele.

O filme não diz, mas Hampton se dizia marxista-leninista. Contra a política identitária e racial, ele fez com que os panteras negras se aliassem a negros, a brancos pobres e até a gangues —a Coalizão Arco-íris— contra a agressão policial, que seria um momento do combate ao capitalismo.

Hampton promoveu a auto-organização de comunidades carentes, pondo de pé restaurantes populares e comitês de apoio às vítimas da violência. Some-se a essa prática a postura pantera negra: cabelos black power, casacos de couro, boinas, fuzis à vista, enfrentamento da polícia, defesa da revolução socialista internacional.

Fred Hampton, morto pela polícia, demonstrou desde cedo vocação para o ativismo - David Fenton/Getty Images

Apesar do seu pendor bolso-paranoico, Hoover (Martin Sheen, formidável) talvez não estivesse errado ao dizer que o messias negro poderia deflagrar e liderar uma rebelião popular. A política do poder não quis conversa com Hampton. Graças a seu infiltrado, o FBI o matou a sangue frio. Não foi esquecido: é um herói do Black Lives Matter.

O debate sobre a organização do movimento negro é antigo. Como os trabalhadores descendem de escravos, e o racismo é estrutural, Trótski cogitou a criação de um partido negro nos Estados Unidos. Quando foi morto, Malcolm X discutia com os trotskistas do Partido dos Trabalhadores Socialistas a organização de tal partido.

Se o sopro épico da organização dos desvalidos percorre “Messias Negro”, não há brisa que alivie a aflição dos injustiçados em “Quo Vadis, Aida?”. O filme se passa em 1995, na guerra da Bósnia, durante o massacre de 8.373 muçulmanos por milícias sérvias em Srebrenica.

Não há ações coletivas, e sim a tragédia de indivíduos. Caçada, uma multidão se refugia num quartel da ONU, buscando a proteção dos encarregados de mediar o conflito. Aida (Jasna Djuricic) é uma tradutora que serve de intérprete entre os perseguidos e o general Ratko Mladic (Boris Isakovic), criminoso de guerra sérvio.

Aida percebe que os fascistas preparam a mortandade. Corre para cá e para lá, implora, esconde o marido e os filhos, constata que aqueles que os matarão eram seus vizinhos há poucos dias. Clama, reclama.

Mas a política dos poderosos deste mundo, bem como o ímpeto fascista, são avassaladores, e o morticínio se consuma em cenas que lembram “Os Desastres da Guerra”, de Goya. Jasna Djuricic corporifica nos gestos e no rosto aquilo que as palavras da política já não podem dizer: a injustiça que esmigalha.

O título de “Aida” traz o filme para o presente. Num evangelho apócrifo, são Pedro escapa de ser crucificado em Roma. Encontra com Jesus e lhe pergunta: quo vadis, aonde vais? Cristo responde que vai a Roma —para ser crucificado de novo.

Aida volta a Srebrenica. Para procurar os cadáveres da sua família, ver que sua casa foi ocupada por quem os matou. Volta à cidade para ser crucificada de novo porque o passado não passou.

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