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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Werner Herzog troca moral e política pelo sublime em 'O Crepúsculo do Mundo'

Cineasta alemão narra em novo livro a saga de Hiroo Onoda, tenente que não acreditou no fim da Segunda Guerra Mundial

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Os heróis de Werner Herzog são bizarros. É gente como Aguirre, conquistador espanhol em busca de Eldorado; Fitzcarraldo, empresário irlandês que faz um teatro de ópera em Manaus; Timothy Treadwell, ambientalista americano que convive com ursos no Alasca.

O cineasta alemão foi a Tóquio em 1997 para dirigir uma ópera contemporânea. Num jantar para ele, o compositor da obra chegou "fora de si de tão agitado" e anunciou a honra suprema: o imperador convidava o diretor para um tête-à-tête.

Para pasmo dos japoneses, Herzog recusou a "formalidade vazia". Ele veio lembrar a gafe: "Em volta da mesa, todos haviam se transformado em estátuas de sal. Ninguém parecia respirar. Todos baixaram o olhar, desviando-o de mim, um longo silêncio de arrepiar instaurou-se na sala".

Ilustração publicada em 29 de abril - Bruna Barros

Fora o imperador, com quem, afinal, gostaria de se encontrar no Japão? Herzog respondeu na lata: com Hiroo Onoda. De suas conversas com ele resultou o recém-lançado "O Crepúsculo do Mundo" (Todavia, 94 págs.), um livro sublime, ainda que amoral e politicamente ingênuo.

O tenente Onoda é o suprassumo dos tipos de Herzog. No final de 1944, seu comandante ordenou que defendesse Lubang, uma ilha nas Filipinas ocupada pelo Japão. Não poderia se render nem se suicidar. Tinha que guerrear até que o exército imperial mandasse reforços.

O Japão capitulou sete meses depois. Onoda, não. Seguiu lutando porque não recebeu novas diretrizes. Chefiava sete homens. Depois, dois. Depois, nenhum. Com munição podre, e a espada que afiava amiúde, combatia sozinho. Cumpria ordens emanadas do imperador Hirohito.

Filipinos, americanos e japoneses sabiam que estava de tocaia na mata. Jogavam panfletos dizendo que a guerra acabara. Alto-falantes gritavam para render-se. Deixavam jornais para que constatasse que o mundo mudara. Em vão. Eram ardis do inimigo para capturá-lo, pensava.

Onoda continuava em 1944. Tanto que bombardeiros americanos ainda cruzavam os céus. Mas ele não sabia que os Estados Unidos agora jogavam bombas na Coreia e, depois, no Vietnã. Até que, depois de uma das 111 armadilhas montadas para pegá-lo, o samurai sumiu.

Foi dado oficialmente como morto. Todavia, seguia na selva. Ia aos campos roubar sacos de arroz. Ou retalhar um boi e voltar com pedaços para a floresta. Andava de costas para que suas pegadas iludissem o inimigo. Polia a espada em cuja lâmina o sol chispava.

"O Crepúsculo do Mundo" se embrenha no vento, na lama, na névoa —no mundo físico. Só vai ao metafísico quando o tenente imagina que está num hospital militar e, ao acordar depois de anos de inconsciência, lhe dizem que sonhara. "A floresta, a chuva, tudo é um sonho?" se pergunta.

O tenente viajara na juventude e enriquecera. Com 19 anos, foi o primeiro a ter um Studbaker na China. Mudou de vez ao aprender kendo, a esgrima com espadas de bambu, e entrar no exército. Ficou inflexível, incisivo, uma espada fatal nas mãos do império que queria dominar a Ásia.

O brilho cego de paixão e fé se apagou em 9 de março de 1974. Foi em Lubang, quando seu ex comandante por fim ordenou que se rendesse. Onoda entregou a espada ao presidente Ferdinand Marcos, que o perdoou por ter matado 30 soldados, policiais e camponeses filipinos.

Foi recebido como herói em Tóquio porque cumprira o dever. Pouco importa se, em prol do imperialismo japonês, tivesse assassinado inocentes. Se guerreara por uma ditadura militar e um imperador com tudo de criminoso e nada de divino. Suas vítimas jaziam sob sete palmos de terra.

Onoda escreveu o livro "Os Trinta Anos de Minha Guerra", publicado no Brasil pela editora Shinbun e esgotado há décadas. Na última página, patético, pergunta: "Por que lutei durante 30 anos? Por quem? Qual era a causa?" São perguntas que "O Crepúsculo do Mundo" não faz.

Ao trocar o imperador pelo tenente, Herzog trocou também a moral e a política pelo sublime. Como na canção de Milton Nascimento e Lô Borges, não pergunta aonde vai a estrada de fé cega e faca amolada. E a música da paixão, pela beleza, pode levar ao nó cego do desvario.

O guerreiro morreu com 91 anos, em 2014. Viveu no Mato Grosso do Sul, aonde seu irmão emigrara. Herzog fecha então o livro com chave sublime, trocando o ódio da guerra por uma bizarra ode ao agronegócio:

"É somente no meio do gado no Mato Grosso que Onoda encontra alguma esperança. Seu coração bate no ritmo do dos animais, sua respiração respira com eles. Então ele sabe que está onde está".

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