"Rainha Lira", peça recém-lançada de Roberto Schwarz (editora 34, 123 págs.), é a redução de uma quadra tormentosa da vida de um país fictício. Começa com o levante de 2013. Passa pela derrubada da Rainha e a coroação do Coiso. Acaba com o discurso do Rei ao sair da cadeia.
A Rainha Lira alude a Dilma; o Coiso, a Bolsonaro; o Rei, a Lula. Mas a redução não é reducionista. Ela escancara traumas e aflições, vitórias e derrotas, impasses de uma realidade maior que os personagens. "Não somos uma coisa só", diz Rita, dona de casa na periferia.
A fragmentação inapelável da "coisa" gera castas, grupos, facções, famílias que se digladiam pela raspa do tacho nacional. Se aderisse à nossa tradição cordial, "Rainha Lira" acabaria num Carnaval bonachão. Ou num tropicalismo do tipo: não tem jeito, o Brasil é o fim do mundo.
Mas eis que a peça é solar, embora acabe em morticínio. Já no título ela remete a "Rei Lear". No dizer do Bobo, se a Rainha "der um passo à esquerda, é porque vai para a direita. De coração é revolucionária, por experiência é ressabiada, mas não completamente, o que atrapalha tudo".
Como na matriz shakespeariana, Lira tem três filhas. Austéria é uma neoliberal cabeçuda. Glorinha quer ordem, mas "conversando com os oprimidos, que não devem morrer de fome nem perder a fé no futuro". Por fim, Valentina é uma ex-guerrilheira que "tomou choque elétrico, viu a morte cara a cara e hoje ninguém sabe o que pensa, nem ela mesma".
Outra inspiração é Brecht. Épicos, os diálogos desnudam os embustes autocomplacentes dos personagens. Trocam suas fantasias bem-pensantes por interesses concretos, sejam eles imediatos ou de alcance histórico.
É assim que "Rainha Lira" investiga a vida material da sociedade. As brigas que opõem os personagens dizem respeito à expropriação, perpetrada pelos proprietários, e à luta por um lugar ao sol, por parte da ralé.
Escudar-se em Shakespeare e Brecht poderia redundar numa geringonça esquemática, numa tipologia de caricaturas. Ocorre que o pendor sociológico de Schwarz foi superado, e muito, pela sua arte ardida, informada pela língua de Machado, Oswald e do Teatro de Arena.
A peça dá voz a dezenas de vozes que entoam cacos de verdades, mentem e se desmentem. Como elas não se harmonizam numa verdade única, modulam uma protofonia de ardis (dos mandões) e anseios (dos mandados). O todo é dialética na veia, luta de classes à bruta.
"Rainha Lira" fala à inteligência, pois. Cabe à plateia responder às questões que a peça embute: é possível uma mudança à vera com uma direção acomodatícia? A conciliação é a única saída? Na hora do vamos ver, a classe dominante tem algo a oferecer além de pauladas no lombo?
Eis algumas das falas sem fricote que dão vida a essas questões, dissolvem a fé em dogmas:
"Rainha: Nem tudo que é justo é possível, mas nem por isso deixa de ser justo."
"Voz: Nasci para patroa, mas trabalhei a vida inteira como doméstica. Sei ler e escrever. Por que não posso mandar?"
"Ainda outra: Morte ao comunismo! Os cacarecos que temos são sagrados e ninguém vai nos tirar!"
"Outra, ainda: Não ter emprego é pior que não ter patrão, que já é horrível. Temos direito a ser explorados."
"Vera: A revolução que você tem na cabeça é um banzé de secundaristas."
"Fidelino: Se os pobres se unissem, eles viravam o jogo. Mas antes que isso aconteça uma parte deles se vende e fica tudo como antes. É diabólico."
"Estudante: É essa desgraceira que estamos vendo, mas nem por isso somos pouca porcaria. Pelo contrário, a miséria dá dinheiro."
"Outra voz: Cada um por si e Deus pelo capital."
"O Chefão: O ressentimento da porcada é colossal."
"Ricardo: A transformação do pé-rapado em super-homem histórico é um pesadelo."
"Alves: Alguém precisava estancar a moralização."
"O Coiso: A minha regra é passar por cima da regra e avançar na rapadura direto."
Quem fecha a peça é o Rei. Ele diz que juízes desonestos e políticos derrotados o puseram na cadeia e agora, a contragosto, "vão escolher entre banditismo e progresso. Nem que seja mínimo, sem o qual nem o atraso funciona". Sua última frase mostra como as expectativas brasileiras estão baixas: "Espero não ser vaiado na saída".
Com "Rainha Lira", Roberto Schwarz radicalizou sua obra crítica, transformando-a em arte de estilo tardio. A peça condensa o tanto que criou em 83 anos de vida —e enfrenta com brio a balbúrdia do presente. É sem ilusões, com fiapos de esperança, que sonda o futuro.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.