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Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

Paris bate o recorde de maior ditado do mundo nos Champs-Élysées

A França ainda não notou que o objetivo da educação é lucrar e perpetuar a nata que manda

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Há inúmeros motivos para estar em Paris no começo do verão. Um deles se deu no domingo passado, nos quase dois quilômetros entre o Arco do Triunfo e a Praça da Concórdia. É onde fica, segundo eles lá, a mais bela avenida do mundo, a dos Champs-Élysées.

O sol aquecia 5.100 pessoas, entre dez e 90 anos de idade, que se inscreveram para o certame. Pelo que deu para ver na televisão, não havia cabisbaixos. Mesmo sendo uma competição, reinava a alegria.

Ilustração para coluna de Mario Sergio Conti de 9 de junho de 2023 - Babayuka/AdobeStock

A avenida já viu muita coisa. Bonaparte fez no seu topo o arco em homenagem aos soldados que tombaram para que fosse imperador. De Gaulle desfilou ali para festejar a liberação de Paris —e colaboracionistas atiraram nele. Lá se festeja a Queda da Bastilha e as Copas do Mundo. No Réveillon, incendeiam-se carros. Os coletes amarelos a tomaram de assalto.

Mas nunca os Champs-Élysées tinham virado uma imensa sala de aula. Ela foi ocupada em sequência por três turmas. Logo na primeira caiu o recorde: 1.997 pessoas participaram do maior ditado jamais feito desde que o samba é samba. Ele entrou no livro "Guinness World Records". "Vive la France!"

Quem fez o megaditado foi Augustin Trapenard, um especialista na obra das irmãs Brontë. Ainda que apresente um programa na TV sobre questões vernáculas, não é todo dia que um crítico literário conduz uma atividade de massa. O ditado é uma paixão francesa.

Trapenard ditou um trecho de "A Mula do Papa", que está no livro "Cartas do Meu Moinho", de Alphonse Daudet (1840-1897). Ninguém lembrou, e muito menos denunciou, o antissemitismo de Daudet, escritor de segunda linha tido por grande estilista.

Como em todo ditado que se preze, Trapenard primeiro leu o trecho inteiro. Depois, repetiu cada frase três vezes. O texto tinha armadilhas, palavras especiosas. A mula de Daudet contracenava com um "fifre" (tocador de pífano) e "ourdisseuses" (urdideiras).

Os franceses fazem dois ditados por semana no curso básico. A caneta tinteiro é obrigatória. Os parágrafos devem começar a dois dedos da margem. O mata-borrão é liberado. Pula-se uma
linha a cada parágrafo. A professora deve falar com clareza.

O ditado é assunto recorrente na conversa de adultos. Eles se desafiam com palavras de ortografia difícil.
Alguns o recordam com desagrado. Mas concordam que o ditado é útil. Até porque, no curso superior, perde pontos quem comete faltas de acentuação, concordância e grafia.

A França é atrasada. Não notou que o objetivo da educação é duplo. Primeiro, lucrar. Depois, perpetuar a nata que manda e a malta que se mata em empregos manuais e mal pagos. Daí a obrigação do ensino caro e de ponta para os baronetes, e de escolas medonhas para a galera.

Gente com genes de dinossauros, a francesada tem um sistema educacional estatizado e grátis, do maternal ao Collège de France. Pagas, e com prestações tabeladas, só as poucas escolas religiosas, que contudo seguem o currículo geral e são controladas pelo Estado.

O ditado é um passo de sentido igualitário. Depois dele vem a análise de textos, que ensina crianças e adolescentes a entender o que leem, a destrinchar teses gerais e subordinadas, argumentação e conclusões. É um exercício de lógica no qual se apreende o sentido da linguagem escrita.

No fim, há as redações. Elas treinam os alunos a apresentar fatos e ideias, a concatená-las e expressar o que pensam. Seus temas vão de "minhas férias" a, como num vestibular recente, "guerra e paz: formas de conflito e modos de resolução". Na teoria, todos têm a mesma base educativa ao fim do curso.

À esquerda, diz-se que, a começar pelo ditado, a educação francesa é elitizada. Suas regras e fórmulas tolhem o engenho de alunos pobres, e a língua viva está nas periferias. De fato, a educação não é neutra, veicula valores tradicionais. Mas, sem normas, não há solo comum para a comunicação.

À direita, logo se escutam perguntas aflitas: e a liberdade? Onde fica o direito de dizer na escola que Papai do Céu tudo proverá e a Terra é chata? Cabe à família sã, não ao Estado lulopetista, ensinar que a cloroquina engorda e faz crescer. Ditado, só de Olavo de Carvalho.

De onde se conclui que a França e seus ditados não estão com nada. Que o digam os 66 franceses que ganharam o Prêmio Nobel. E que a França seja o sexto país mais produtivo do mundo —o Brasil é o 57º.

Paris pode ter a mais bela avenida. Mas nenhuma tão grande quanto a Sapopemba, na zona leste. Tem 45 km de pujança. Ali ninguém faz ditado.

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