Jornalista e crítico de TV, autor de "Topa Tudo por Dinheiro". É mestre em sociologia pela USP.
'Doutor Castor' tinha tudo para ser excelente, mas escorregou nos detalhes
Série mostra o papel da TV na construção da imagem simpática do bicheiro carioca Castor de Andrade
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Castor de Andrade foi por muitos anos o “capo de tutti capi” do jogo do bicho no Rio de Janeiro, além de ser suspeito de envolvimento em dezenas de crimes, de contrabando a assassinatos, passando por coação e suborno de policiais, políticos e juízes.
Na série documental “Doutor Castor”, o jornalista Marco Antônio Araújo procura explicar como um homem com essa ficha corrida foi, ao mesmo tempo, uma figura adorada, paparicada e respeitada pelo povo e pela elite carioca.
Castor investiu somas consideráveis do dinheiro que ganhou com a contravenção num time de futebol, o Bangu Atlético Clube, e em uma escola de samba, a Mocidade Independente de Padre Miguel.
O documentário do Globoplay é muito bem-sucedido na demonstração de que a popularidade e o carisma de Castor derivam da generosidade com que despejou literalmente malas de dinheiro no Bangu e na Mocidade.
Mas um terceiro fator fundamental para a compreensão do fenômeno é tratado, na maior parte dos quatro episódios, apenas de forma subjacente. Castor não teria se tornado a figura mitológica que foi sem a complacência de quem, na verdade, deveria ter se oposto a ele.
Os depoimentos de Aloy Jupiara e Chico Otavio, autores do livro “Os Porões da Contravenção”, ajudam a iluminar a “sociedade” entre jogo do bicho e figuras ligadas à ditadura militar. E vão além, ao mostrar como os bicheiros circularam com facilidade no mundo político pós-1985 (o apoio a Moreira Franco e o famoso almoço da cúpula com Darcy Ribeiro são lembrados).
Já a contribuição da mídia é vista o tempo todo, embora pouco discutida. Da profusão de reportagens e entrevistas com Castor para a TV, utilizadas pelo documentário, sobressai o tratamento reverencial ao contraventor, visto sempre como um sujeito engraçado, brincalhão, boa praça e generoso.
Esta postura reiterada não seria possível sem a omissão ou o consentimento em outros níveis na hierarquia das empresas de comunicação.
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, diretor-geral da Globo entre 1977 e 1997, era amigo de Castor e o visitou na prisão. O ex-executivo se justifica no documentário: “Eu não sou juiz nem nunca fui delegado. Pra mim, o jogo do bicho é apenas uma contravenção. Criminosos eram as pessoas que estavam no governo”.
“Doutor Castor” também mostra que, na gestão Boni, a Globo organizou uma mesa-redonda com os presidentes das escolas de samba, quase todos banqueiros do jogo do bicho que posteriormente seriam condenados por formação de quadrilha. “Hoje seria impossível fazer essa mesa-redonda por causa da baboseira do politicamente correto”, diz ele.
Outro alvo da série é Jô Soares, que entrevistou Castor em 1991, no seu talk show no SBT. O apresentador acha graça quando o bicheiro conta que foi assaltado. “Dei uma sorte muito grande que o assaltante me reconheceu e pediu desculpas.”
Ali Kamel, diretor de jornalismo da Globo, comenta: “É o retrato de uma época. [É como se ele estivesse dizendo] ‘eu estou aqui com um gângster do meu lado, ele está dizendo que é temido por todo mundo. Ele é temido por todo mundo. Vamos rir dessa situação’.”
Discordo de Kamel de que seja “o retrato de uma época”. A condescendência com figuras poderosas é um fenômeno atemporal.
O documentário não traz, infelizmente, a visão de Jô sobre a entrevista de 30 anos atrás.
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