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Julio Wiziack é editor do Painel S.A. e está na Folha desde 2007, cobrindo bastidores de economia e negócios. Foi repórter especial e venceu os prêmios Esso e Embratel, em 2012

Encerrar a UTI Covid foi o acontecimento do ano, diz Beneficência Portuguesa de São Paulo

Para Denise Santos, presidente da instituição, pandemia deve deixar legados definitivos para os negócios de saúde

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São Paulo

Fundada por imigrantes portugueses no século 19, a Beneficência Portuguesa de São Paulo viveu, na semana passada, mais um marco na história do hospital: fechou a UTI Covid. Para Denise Santos, presidente da BP, foi um acontecimento significativo no enfrentamento da pandemia, que deveria deixar legados para os negócios hospitalares no Brasil, tanto do ponto de vista tecnológico quanto da gestão.

"Eu gostaria que o que sobrasse dessa pandemia fosse essa visão de cooperação. Tenho dúvida se a humanidade conseguiu transpor esse olhar. Não dá para olhar só para a sua própria instituição e achar que está tudo certo", afirma a executiva.

Denise Santos, presidente da Beneficiência Portuguesa - Gabriel Cabral/Folhapress

Como começa a história da BP? Estamos falando de 162 anos atrás, com imigrantes portugueses. Isso era muito comum. Tem colônias italianas que também fundaram hospitais. Tivemos o privilégio de ter a família Ermírio de Moraes à frente da BP durante três gerações. Algumas pessoas fazem até uma confusão entre a família, a BP e a Votorantim. Na verdade, são entes separados, mas é fato que a família Ermírio de Moraes sempre dedicou um lado social importante para esse país.

A BP tem vários marcos que combinam não só com a história da medicina, mas também da cidade. Fomos o primeiro hospital, lá atrás, a ter uma tomografia computadorizada, que veio dos Estados Unidos. Na época, ninguém sabia operar. Fizemos a primeira aquisição de uma empresa de medicina diagnóstica para colocar esse serviço a disposição.

Nesse olhar histórico, existe alguma referência da outra pandemia, da gripe espanhola? Como foi lidar com a chegada do coronavírus e como se comparam as duas? De início, traz o sentimento de insegurança, de medo. Não é diferente em hospital. Estamos prontos o tempo inteiro para cuidar e tratar, mas, quando tem essa surpresa, é claro que sacode. Temos um olhar com um horizonte de dez anos. Essa preocupação com o longo prazo traça um caminho na complexidade da medicina.

Quando a pandemia veio, antecipamos algumas iniciativas que estavam um pouco mais adiante, mas não mudou o nosso planejamento estratégico de longo prazo, que é a construção do polo de saúde. Falamos muito dos quatro Ps de medicina: prevenção, predição, personalização e participação, que eu acho que é o mais difícil, que é como todos nós participamos do cuidado da nossa saúde. E a pandemia trouxe isso à tona. Vínhamos discutindo isso, como engajar o indivíduo na sua saúde. Acho que isso vai dar o tom do negócio no futuro.

Por outro lado, sobre a crise em si, fazemos de dez a quinze simulados de crise por ano. Desde simulação para o caso de pegar fogo na vizinhança, até ciberataque. Esse estado de alerta ajudou. Em dezembro de 2019, já ouvindo as notícias da China, estabelecemos um comitê de crise.

Em janeiro, todas as nossas reuniões estatutárias, de conselhos e comitês já foram virtuais. Todos que tiveram viagem internacional de férias em janeiro foram para quarentena quando voltaram. Quando o primeiro caso chegou, em março, teve mudança de fluxo no hospital, separando ala de Covid.

Transformamos alguns serviços, migramos para o digital, atendimento, telemedicina, drive thru de exames. Ao mesmo tempo em que cuidamos de quem precisava, temos a turma que não parou nunca.
Grande parte dos colaboradores usando transporte público e lidando com a incerteza. Depois da vacinação, nós não tivemos nenhum colaborador internado. Mas durante o ano passado, tinha vários internados. Implementamos programas de apoio aos colaboradores e aos médicos, ampliamos para os familiares, com apoio psicológico, físico, financeiro.

Nosso grande público de enfermagem são mulheres. Então, demos um apoio para essas mães deixarem seus filhos com alguém, porque as escolas fecharam. Depois veio a segunda onda, que eu diria até que, para nós da saúde, foi psicologicamente pior.

Porque teve a falta de insumos nesse momento? Porque teve a falta de insumos e porque, entre aspas, todos nós sabíamos que a vacina estava para chegar. E as pessoas saíram para férias como se nada fosse. Passar pela segunda onda foi escolha nossa, da população, com a vacina prestes a chegar. Todo mundo muito cansado, gerenciando crise o ano inteiro. E veio a crise de insumos.

​E teve o agravante da lotação. Tivemos a possibilidade de ajudar muitos hospitais pequenos. Fomos a mercado no ano passado, fizemos captação de recurso. Com uma certa tranquilidade de caixa, a gente consegue lidar com isso de uma forma diferente de quando se olha para outros tantos, quase 6.000, hospitais pelo Brasil que mal têm uma infraestrutura. Nesse começo de ano, levamos telemedicina para quase 90 municípios em todas as regiões, ensinando, por exemplo, a reparar respiradores.

Eu gostaria que o que sobrasse dessa pandemia fosse essa visão de cooperação. Eu tenho dúvida se a humanidade conseguiu transpor esse olhar. Não dá para olhar só para a sua própria instituição e achar que está tudo certo.

Naquele momento crítico, o dono do laboratório Cristália, Ogari Pacheco, fabricante de um dos insumos da intubação em falta, disse que alguns hospitais fizeram estoque de produto, deixando faltar a outros hospitais. Teve isso? De forma alguma. Eu posso falar pela BP. Eu, pessoalmente, conversei com todos da indústria. Fizemos uma força-tarefa entre vários hospitais via Anahp [associação dos hospitais privados] para conseguir importação direta de Índia e China.

Cloroquina foi um assunto que tomou proporção grande. Como foi lidar com isso? De novo, posso falar pela BP. Todos os tratamentos, não só de Covid, são prescritos através de ciência e comprovação. Não tivemos tratamento precoce. Por outro lado, fomos um dos cinco hospitais de excelência no país que participaram de uma pesquisa em todas essas frentes. Entregamos para o Ministério da Saúde os resultados da pesquisa, que, do ponto de vista científico, comprova que não tem eficácia.

Tivemos a figura do presidente da República, ministros e autoridades colocando em dúvida a eficácia da vacina e, por outro lado, exaltando esse tipo de medicamento.

Para quem está na linha de frente, qual é o peso disso? Isso não foi só no Brasil. Vacina politizou em todos os lugares do mundo. Realmente, o desenvolvimento da vacina foi muito rápido, mas a tecnologia usada já vem sendo desenvolvida há muito tempo. O próprio coronavírus é um vírus relativamente conhecido, porque já existiam outros.

Para nós, que estamos na linha de frente, somos objetivos. Estados Unidos, Europa e aqui, não foi diferente. Fica uma distração desnecessária. Para nós, o importante foi o foco, o trabalho e salvar o máximo de vidas possível.

Agora, mesmo com a vacinação avançada, a sra. vê chance de uma próxima onda? Uma opinião muito pessoal minha, que não sou médica, sou engenheira, é que vamos entrar no endêmico. Assim como a H1N1, que temos de tomar vacina todo ano. Estamos em um país que leva isso muito a sério. As pessoas aderem à vacina.

A dificuldade que vemos na Europa e nos Estados Unidos é que chegaram em um nível de vacinação e não conseguem ir adiante. Acho que alguns países vão colocar isso como obrigatório, porque, quando tratamos de pandemia, não é só o cuidado consigo. Tem o outro, o mais vulnerável.

Nesta semana, estamos em festa porque fechamos a UTI Covid. Eu abri um belo vinho, feliz da vida. Para mim, foi o acontecimento do ano, porque isso diz tanta coisa. Acho que em breve teremos medicamentos endereçando esse tema. Já está na fase três de testes clínicos um medicamento que eu acho que vai ter sucesso, e vamos endereçar os que não querem vacinar.

Outro grande tema que acelerou na pandemia foi a telemedicina. Qual é a sua previsão nisso? A telemedicina foi regulamentada provisoriamente na pandemia, mas é uma tecnologia que vem para ficar. O conceito de telemedicina ainda não é muito bem interpretado porque as pessoas confundem com teleconsulta, em que eu ligo para o meu médico pelo WhatsApp e converso com ele. A telemedicina está integrada, de fato, ao seu prontuário eletrônico, às suas fichas. É uma tecnologia consolidada que já acontecia entre instituições de saúde.

Agora, indo para o consumidor, isso vai continuar. Vimos a telemedicina crescer na BP quase 50%, 60%. Temos hoje cerca de 20% dos nossos atendimentos via telemedicina. E temos um projeto importante com a RaiaDrogasil, em que qualquer um pode entrar, fazer sua consulta e não acessar uma estrutura hospitalar ou um pronto-socorro que é caro.

Segurança e ciberataques são grandes questões também? São temas muito críticos. Penso que todos os conselhos de administração de todas as empresas, seja ela qual for, deveriam estar endereçando isso.

Vejo muitas empresas, inclusive de saúde, falando da experiência digital na frente sem resolver a questão estruturante para trás. O estado de atenção é enorme. Temos uma estrutura de dados na BP robusta, com uma gestão em cima disso.

Cuidado digital não é apenas quando eu falo com alguém na tela, é todo o processo integrado, desde dispensação de medicamento, controle e rastreabilidade. Eu quero que seja dado o medicamento certo, na hora certa, para o paciente certo.

Por exemplo, se um médico prescreve um medicamento com dois componentes que podem ter uma reação de interação medicamentosa não adequada, o sistema já alerta. Então, tem a segurança de dados para um ataque lá fora e a segurança de dados de como eu gerencio isso dentro de casa no cuidado com o paciente.

Também se fala muito sobre a remuneração no serviço de saúde. Hoje, os hospitais são remunerados pelo atendimento, não pela qualidade de entrega. Isso deveria mudar? Vamos caminhar para isso. Na BP, já estamos migrando uma parte da remuneração para esse tipo de conceito, chamado de saúde baseada em valor. Pegamos hoje uma linha de cuidado de uma patologia da cardiologia e conseguimos olhar a linha inteira e remunerar pelo desfecho.

Para ter isso, a transformação digital precisa acontecer. Essa é a dificuldade quando falamos dos 6.000 hospitais que o Brasil tem. Desses, no máximo 30% têm prontuário eletrônico atualmente. Falamos disso há pelo menos 10, 15 anos. Esse momento que vivemos de crise é importante para olhar para essa modelagem de negócios atual. A medicina vai evoluindo e vamos rediscutindo esses modelos.


Beneficência Portuguesa
Com 60 especialidades médicas atendidas, a instituição tem 900 leitos, sendo 200 de UTI. No ano passado, realizou 170 mil consultas médicas, 29 mil sessões de quimioterapia e 88 mil consultas no pronto-socorro.

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