Siga a folha

Jornalista, autor de “Máximas de um País Mínimo”

Descrição de chapéu vale do javari

Vida ou morte

Temos de recuperar nosso direito à sorte e à roda da Fortuna rosianas

Assinantes podem enviar 5 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

"Viver é muito perigoso: sempre acaba em morte". É uma das falas-pensamento de Riobaldo, em "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Como citação esparsa, costuma-se omitir a segunda oração porque a primeira, isolada, empresta à reflexão um acento entre existencialista e metafísico.

Falaria à humanidade, não ao indivíduo. Não deixa de ser uma daquelas boas traições ao texto original. O fatalismo cru na finitude —"acaba"— cede a "viver", a forma nominal do verbo, que não tem tempo.

A vida como um bem não fungível, que não se gasta e existe em outro plano além deste —em que, morrendo, nos esgotamos—, está na origem de todas as religiões.

Indígena à frente de cartaz com fotos de Dom Phillips e Bruno Pereira - Ueslei Marcelino/Reuters

Pessoas morrem ao atravessar, distraídas, uma rua. Ou engasgam com um pedaço de carne. Ou podem ser fulminadas por um último superlativo besta —"Lindíssimo!"—, a exemplo de José Dias, o agregado da casa de Bentinho, em "Dom Casmurro".

E pronto. Entram no reino do nunca mais. A vida sempre acaba em morte. Jair Bolsonaro tentaria emporcalhar meu parágrafo, discursando sobre uma montanha de cadáveres: "Todo mundo morre um dia". "Tem que deixar de ser um país de maricas".

Bem mais moço, vislumbrei a vereda de um Estado que nos deixasse viver e morrer em paz, desde que cumprido o misto de determinação e desiderato das democracias, que têm de garantir a igualdade perante a lei, de assegurar as liberdades individuais e de buscar corrigir, por meio da educação e de outras políticas de bem-estar, o que a origem de cada um desconsertou.

Esperança vã. Quantos são os que, em algum momento, já se disseram liberais e estão agora a serviço de um governo que cultua a morte em vida?

Com frequência estúpida, não se morre no Brasil e em outros países marcados por iguais violência e miséria porque, afinal, a morte faz parte da delícia e da dor de existir, como sugere a primeira oração da citação rosiana. A carnificina nada tem a ver com um "punhal de amor traído", da música de Belchior, ou com uma distração fatal. Não.

É o Estado delinquente que está na origem de boa parte dos mais de 40 mil homicídios dolosos por ano e das quase 670 mil mortes por Covid-19 desde o início da pandemia. E dos soterramentos em razão das chuvas. E do brejo que sufoca as almas quando se rompem as barragens.

E dos sem-teto que se amontoam nos baixos de viadutos e sob as marquises, "sem ar, sem luz, sem razão", lembrando às grandes cidades brasileiras que, nesses navios negreiros "aggiornados", quase sempre se é livre para dormir debaixo das pontes. Quase sempre.

Esse Estado historicamente delinquente tem de ser reformado e contido por governos comprometidos com a democracia e com os fundamentos da civilização. Em 2018, e talvez se possa voltar a 2013 em busca das origens (mas isso fica para outros carnavais), abriu-se no país a trilha para a terra dos mortos com a eleição de Jair Bolsonaro, o presidente convicto de que "a liberdade é mais importante do que a vida". Ao discursar a seguidores em Orlando, defendeu uma população armada e refletiu, com sabedoria peculiar: "Somos pessoas normais. Podemos até viver sem oxigênio, mas não sem liberdade".

Nesse momento, fez uma pausa muito sutil, e seu rosto exibia um misto de esgar e sorriso discreto, como quem lembrasse de alguma coisa. O vídeo circula por aí. Vieram-me à mente, e talvez à dele próprio, os sufocados do Amazonas, dos quais fez pilhéria em uma de suas "lives", simulando a sua agonia. Buscava o riso e o escárnio. Antes, a canalha silenciava sobre os corpos. Hoje, tripudia.

Já escrevi neste espaço que, na eleição de outubro (se houver), a neutralidade entre a corda e o pescoço será necessariamente corda e que a polarização, esse termo quase sempre mal-empregado, se dá entre democracia e não democracia. Atualizo. Haverá uma disputa entre a vida e a morte. A primeira comporta um leque infinito de divergências. A outra é um "estado de sítio permanente", para lembrar de novo Machado de Assis.

Que a memória da luta do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista Dom Philipps colabore para que a vida vença o reino da morte no Brasil. Para que voltemos a ter direito à sorte e à roda da Fortuna rosianas.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas