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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

O ressentimento será sua ruína

Obra-prima de Graciliano mostra como o Brasil resiste à civilização

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Disposto a fugir por algumas horas do intolerável, deprimente, desolador presente brasileiro, há pouco tempo tirei da estante meio ao acaso o romance “São Bernardo”, de Graciliano Ramos.

Comecei a percorrer de novo a história contada pelo fazendeiro Paulo Honório, décadas depois de lê-la pela primeira vez, sem a menor intenção de encontrar ali algum sinal do abismo de barbárie em que despencamos.

A ideia era só reler um clássico da nossa literatura e recarregar as baterias na prosa brilhante do escritor alagoano. Graciliano (1892-1953) é um dos talismãs que costumo invocar nas horas de maior pessimismo.

O autor de “Memórias do Cárcere” prova na ponta do lápis —e que lápis!— que o ser humano brasileiro não precisa ser um desses imbecis, covardes ou bestas-feras que hoje andam aos pinotes por aí.

O problema é que o escapismo literário nem sempre entrega a fuga prometida. Frequentemente, isso ocorre não por falta de qualidade artística, mas pelo excesso.

Fui parar na fazenda São Bernardo e, quando me dei conta, estava no coração do impasse brasileiro. Os principais nós que nos atam ao obscurantismo estão todos lá, expostos com clareza quase didática.

Não quero dar spoilers em demasia, por mais que a ideia de “contar o fim da história” possa soar um tanto ridícula quando se fala de um livro lançado em 1934 e adaptado para o cinema (por Leon Hirszman) em 1971.

Acontece que o Brasil lê pouco —o que é parte do problema. Devia ler mais, e um dos motivos para que não o faça é a crença esnobe e burrinha, comum a muitos dos nossos letrados, de que o prazer de acompanhar boas histórias é indigno de intelectuais.

Recomendo a quem ainda não leu “São Bernardo” que o faça. É provavelmente a obra-prima de Graciliano, embora “Vidas Secas” e “Angústia” tenham torcedores fanáticos que não hesitariam em ir à guerra para discordar de mim.

Espero não tirar de ninguém o prazer de descobrir por si mesmo como Paulo Honório, sujeito autoritário e chucro, mas astuto e ambicioso, desgraça sua vida por puro ressentimento.

Mesmo assim sou obrigado a falar de alguns aspectos da trama para não deixar este texto sem pé nem cabeça. Quem for sensível a spoilers e estiver inclinado a conferir o romance pode parar de ler aqui.

Paulo Honório cava com violência miliciana um caminho de ascensão social numa zona rural em que a lei, embora presente, é meramente formal e moldável pelos vencedores. Nesse sentido, o livro encapsula a história da formação socioeconômica do Brasil.

Ocorre que, embora tenha ideias modernizantes para a fazenda, o sujeito é incapaz de dar o passo seguinte no caminho das elites —apagar as marcas do passado e aplicar um verniz humanista sobre a truculência, como forma de naturalizar e perpetuar a dominação.

Tenta. Ao se casar com Madalena, mulher cultivada, professora de escola normal, o fazendeiro parece disposto a melhorar: “Tive, durante uma semana, o cuidado de afinar minha sintaxe pela dela, mas não pude evitar numerosos solecismos”.

A relação logo desanda. Paulo Honório não consegue entender a sensível Madalena, que trata bem os empregados da fazenda, escreve artigos para um jornal de província e tem ideias “comunistas”.

O ciúme doentio que conduzirá a história a seu final trágico nasce desse ressentimento. Melhor levar São Bernardo à ruína do que reinventar a fazenda em pauta civilizada. Paulo Honório foi um precursor do bolsonarismo.

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