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Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

Descrição de chapéu

Rachadinha, um crime maiúsculo

Termo correto, mas genérico e frio, peculato não dá conta da vida

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Tem sido comum ler e ouvir que, ao abraçar a palavra “rachadinha”, nossa linguagem não ajuda a transmitir corretamente à opinião pública o tamanho maiúsculo da acusação de peculato pela qual o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) teve seu sigilo quebrado.

Como se sabe, rachadinha é o nome informal do uso de funcionários —fantasmas ou não— para desviar recursos públicos, seguido de variados esquemas de lavagem de dinheiro. Uma prática que, não sendo exclusiva da família Bolsonaro, tornou-se, segundo fartura de denúncias, uma marca registrada de sua atuação política ao longo dos anos.

Carlos Bolsonaro posa com arma; vereador teve sigilo quebrado - Reprodução/Twitter

A crítica ao diminutivo faz algum sentido —em tese. Também gosto de imaginar às vezes uma sociedade ideal em que palavras e coisas tivessem perfeito alinhamento de gênero, número e grau, um lugar onde todo mundo esbanjasse letramento e fosse familiarizado com termos jurídicos como peculato.

Na vida real o sentido da crítica logo se esvai. Espelho distorcido, mas espelho, do mundo, a língua é sempre mais rica, contraditória, imprevisível e falha —numa palavra, interessante— do que gostaríamos que ela fosse.

Será verdade que pulsa no grau diminutivo da rachadinha uma condescendência irônica que mal disfarça seu fundo maligno de tolerância com o crime? Me parece inegável que sim. O erro é supor que isso torna a palavra menos veraz.

Sem um belo (no sentido de feio, horrendo) fundo de tolerância com o crime, o Brasil não teria se metido no buraco sem fundo chamado governo Bolsonaro.

Nesse sentido, rachadinha é uma palavra perfeita, e quem propõe sua abolição embarca numa forma de negação da realidade. Termo correto, mas genérico e frio, peculato —do latim “peculatus”, furto do dinheiro público— não dá conta do específico que é sinônimo de vida.

O melhor conselho literário que conheço é do russo Anton Tchékhov (1860-1904), dramaturgo e contista de gênio: “Não me diga que a lua está brilhando; mostre-me o seu reflexo num caco de vidro”. Vale tanto para a literatura quanto para a ciência política. O reflexo é a rachadinha.

Isso não tem nada a ver com rendição ou conformismo. A margem de ambiguidade que costuma acompanhar diminutivos e aumentativos dá e sobra para as manobras semânticas de quem deseja injetar na rachadinha a sua imprescindível carga de maldição.

Afinal, a palavra também está no diminutivo por nomear um golpe de gente pequena e covarde, um tipo de parasita social que se esgueira nas frestas escuras do sistema político e para quem qualquer aumentativo, mesmo do tipo crítico, soaria como um elogio descabido.

A rachadinha não tem conotações mais positivas do que, digamos, o mensalão, mas o fato é que a paixão da língua brasileira por diminutivos e aumentativos carece de estudos mais aprofundados.

Muitas vezes passa despercebido que nem todo diminutivo é carinhoso, assim como nem todo aumentativo é gozador. Por outro lado, nem todo diminutivo é depreciativo e nem todo aumentativo é elogioso.

Em que categoria afetiva devemos enquadrar, por exemplo, o apagão que vem por aí? Até outro dia mesmo —algum momento dos anos 1990—, só usávamos no Brasil a palavra blecaute, forma aportuguesada do inglês “blackout”.

Ao nacionalizar a escuridão provocada pelo colapso energético, assumimos diante dela uma postura de familiaridade e simpatia? De reverência e medo? De zombaria e desacato? Todas as alternativas acima?

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