Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues
Descrição de chapéu Coronavírus

E aí, já (se) vacinou?

Por que o uso do verbo sem o pronome não deveria angustiar ninguém

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O verbo vacinar tem sido cada vez mais praticado no país, apesar da opção do governo de Jair Bolsonaro por rolos e mutretas que atrasaram em muitos meses o processo, como a CPI vem desvendando.

Com o emprego cada vez mais frequente do verbo, vai se ampliando também uma angústia gramatical. Quem cultiva um uso mais rigoroso da língua denuncia a inclinação dos falantes por abrir mão do pronome numa frase como esta: “Vou finalmente vacinar amanhã, viva!”.

O pessoal que se incomoda com esse uso vê nele um erro e uma prova de desleixo linguístico, alegando que o autor de tal afirmação, não sendo uma pessoa que trabalhe vacinando os outros, precisaria dizer: “Vou finalmente me vacinar amanhã, viva!”.

De um ponto de vista normativo, é isso mesmo. Nos contextos em que certo grau de formalidade for exigido, principalmente por escrito, o verbo vacinar nesse caso deve ser pronominal —e fim de papo: “Se o governo fosse sério, quantos brasileiros mais já teriam se vacinado?”.

Muito bem, mas aqui convém invocar a sabedoria de Paulinho da Viola: “Porém, ai, porém...”. Ocorre que toda língua é sempre muito maior do que seu uso normativo, e deixar de ver beleza nisso é meio triste.
Trata-se de um espaço de dimensões múltiplas —às vezes complementares, às vezes contraditórias— que se organizam ao longo de eixos como oral e escrito, escolar e familiar, formal e informal, passado e presente, sem falar de variações regionais e socioeconômicas.

Em grande parte dessas, digamos, bolhas de fala —provavelmente a maioria—, os brasileiros preferem vacinar sem pronome. É o que se poderia chamar de fato da vida. A boa notícia é que isso está longe de significar desleixo e mais longe ainda de ser um problema.

É só a língua se mexendo diante de nossos olhos, de acordo com regras profundas que, antes de condenar, seria melhor tentar compreender.

Embora os lexicógrafos ainda não reconheçam tal uso do verbo vacinar —reflexivo, mas não pronominal—, é legítimo supor que serão obrigados a fazer isso em breve.

Não se trata de chute ou torcida, mas de observação. Verbos pronominais têm uma instabilidade histórica que frequentemente se revolve pela abolição facultativa do pronome —sobretudo em contextos informais, mas não apenas neles.

Isso acontece com casar (“Casou com sua primeira namorada”), sentar e deitar (“Ela foi deitar mais cedo”), derreter (“Estou derretendo debaixo desse sol”), atrasar e quebrar (“Atrasei porque o ônibus quebrou”). Com menos frequência, até arrepender entra na dança (“Arrependi de ter vindo”).

Em todos esses casos, o uso da vida real —inclusive entre falantes com alto grau de escolaridade— alterna a forma pronominal e a não pronominal. Faz tempo que até gramáticos e dicionaristas mais conservadores reconhecem ambas como corretas.

A mesma tolerância dos zeladores da normatividade não se estende (ainda?) a verbos como suicidar-se e queixar-se, entendidos como exclusivamente pronominais. Também estes, contudo, têm sido vistos dispensando o pronome de vez em quando.

Trata-se de uma tendência tão forte que há até verbos cuja forma pronominal vai caindo em desuso, como acordar (no sentido de despertar). “Acordei-me tarde” é uma construção tradicional que hoje soa quase alienígena a ouvidos brasileiros.

Claro que, com ou sem pronome, o importante mesmo é todo mundo (se) vacinar.

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