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Escritora Tati Bernardi transforma em coluna as perguntas enviadas por leitores da Folha

Como matar o machismo em mim

Laila pergunta se algum dia vai se livrar do machismo que existe em todas nós

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Laila, que se define como progressista e feminista, me escreve contando que luta frequentemente contra o seu machismo estrutural e pergunta se algum dia vai conseguir se livrar de tais pensamentos. Achei fantástico poder falar do machismo que existe em todas nós, mulheres.

Eu já desisti de ser uma pessoa sem nenhum pensamento retrógrado e ignorante. Eu estudei em colégio católico e fui criada bem próxima a uma infinidade de homens "queridos" que, na real, eram tóxicos com suas parceiras, mães e filhas.

Portanto, claro que parte obscura da minha mente pipoca uns preconceitos, umas concepções conservadoras ou até mesmo a ideia de que alguns abusos não são exatamente abusos e deveriam continuar normalizados (como eram há uma ou duas décadas).

Até aí, minha mente também me diz "você tem cinco segundos de vida" quando percebo que dei uma mordida em um pão com a validade vencida, o lance é saber o que sobra da gente em meio a esse emaranhado de frases de autores péssimos e desconhecidos que é a nossa rede neural. Quem são todos esses que pensam em mim?

Minha esperança é que meu machismo morra antes mesmo de viajar na cauda elétrica de uma sinapse. Sigo alimentando com bons livros a minha vergonha na cara

Mas sim, infelizmente sou machista infinitas vezes por dia.

Por exemplo, a primeira coisa que eu penso quando vejo uma mulher sexualmente livre, vestida de forma meio "te quero agora", dando em cima de pessoas, é: "PUTA". Tudo bem que essa mulher sou eu mesma, e estou me olhando no espelho do elevador, indo para algum lugar fazer alguma farrinha. Mas uns 20% do meu cérebro é tomado por homenzinhos gritando "PUTA, PUTA!". Não que, por isso, eu deixe de ser feliz nos meus rolês.

Eu jamais carrego uma sacola ou mochila pesada se tem um homem comigo e ele não está sobrecarregado.

Sempre que eu vejo alguma jovem muito meiguinha, muito boazinha, muito de "trato fácil", eu penso na hora: vai abrir a boca e vão vir aquelas ideias e entonações de "sonsa, mocinha para casar". Poxa, deixa a sonsa, não é mesmo? Isso de eu ter raiva de mulher fofa há tantos anos deve ser uma forma bem escrota de machismo.

Eu já tive bode nota 9,5 de homem que racha conta de restaurante no primeiro date. Hoje, eu tenho bode nota 1,2. Mas ainda bode. Por que? Não faço a menor ideia. Nem quero que paguem a conta. Credo! Não me paguem nada. Nunca. Mas QUE BODE quando racham a conta em date. Que bode de homem que não me protege de chuva, frio, perrengues e haters.

Uma vez eu estava sendo sacaneada por umas pessoas no trabalho e conversei com três advogados. Uma mulher inteligentíssima me garantiu que eu deveria somente esquecer aquela história. Um homem brilhante me explicou tudo o que aconteceria se fôssemos por aqui ou por ali. E um jovem emputecido que deu um murro na mesa e falou: isso não se faz com uma mulher como você! Na hora o vi vestido de super-herói. Ele me salvaria de toda a maldade, inveja e pães vencidos do mundo.

Desejar um homem que lhe defenda, que lhe salve. Isso é ser o quê? Ser machista para cacete. Gastei uma fortuna com o advogado só porque meu pai nunca me defendeu assim. Nenhum homem nunca me defendeu assim. Nem mesmo esse advogado.

Melhorei demais. Há 15 anos, eu ainda acreditava que a relação entre mulheres, no trabalho, era de fato mais difícil. Eu realmente pensava que deveria me "comportar bem" para conseguir bons parceiros (nunca me comportei bem, mas eu me culpava quando dava errado, em vez de culpar o machismo).

Na juventude, acho que já vi barbeiragens no trânsito e olhei para confirmar se era uma mulher com a idade que tenho hoje. Com trinta anos, já devo ter visto uma mulher com o corpo que eu tenho hoje e pensado: "Embarangou depois da maternidade."

Já culpei os hormônios para livrar a barra de namorados péssimos. Já tive nojo de estar menstruada. Acreditei a vida inteira que a responsabilidade em não engravidar era minha.

Esses dias, eu falei para meu namorado descobrir por que a geladeira estava fazendo um barulho estranho. "Isso é coisa de homem". Rimos da minha imitação barata de mulher antiga, do meu comentário irônico. Só que eu estava falando sério.


Tati Bernardi responde às perguntas mais inusitadas e aos comentários mais estranhos de seus leitores. Quer participar da coluna O Pior da Semana? Envie sua mensagem para tati.bernardi@grupofolha.com.br

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