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Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

Descrição de chapéu Fies Enem

Racismo no ambiente escolar promove genocídio cognitivo

Um descuido gramatical basta para fazer de um negro adulto um menino em sala de aula

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Não acreditavam em sua bela caligrafia, que as notas de sua prova eram mesmo altas, que não colava e que não bagunçava nas aulas. A imagem do menino negro, pobre, mirrado, irritava o status quo quando não correspondia às expectativas de uma educação pública sofrida e, muitas vezes, racista.

Ao serem promovidas durante décadas, violências diversas contra o desenvolvimento intelectual de meninos e meninas pretos e pretas, perpetuou-se também um genocídio cognitivo, cujo foco era exterminar as mentes daqueles que poderiam contribuir para que seu povo —sua raça, sua gente— fosse preservado e o futuro possível.

Quando uma criança negra diz que só queria que a escola fosse boa com ela, vê-se nitidamente a promoção do ambiente que faz morrer a vontade de aprender, conhecer e buscar os saberes sobre existir no mundo. Como ser vivo no mundo. Negro aluno —primeiro negro, depois, quem sabe, aluno.

Essa realidade reforça o que bem retratou bell hooks (que grafava seu nome com iniciais minúsculas), escritora e um dos grandes nomes da luta antirracista, em sua obra "We Real Cool", dedicada a estudar masculinidades negras: uma realidade imperialista e supremacista na qual meninos negros —futuramente homens negros— serão sempre mais corpo do que mente, de raciocínio mais lento, mais limitado.

No capítulo que se dedica a tratar da escolarização de garotos e homens negros, hooks traz exemplos de escritores que, em seus relatos autobiográficos, tentam se distanciar do estereótipo que lhes foi conferido desde sempre, colocando-os como menos capazes intelectualmente, e relembram o grande esforço que fizeram para ter acesso a alguma educação, ainda que à custa do vigor de mentes curiosas, aptas a receberam a genialidade quando esta não lhes fosse negada por uma educação ainda colonialista.

Luiz Gama, que defendeu escravizados na Justiça - Wikicommons

Eliminar o desejo de aprender e impedir que crianças negras tenham um ambiente propício para desenvolver imaginação e cognição é parte da estratégia racista de uma estrutura social que cinde povo e progresso; que assassina o pensamento para garantir que as gerações futuras vaguem mortas em vida, apáticas, acríticas, marginalizadas e extermináveis.

Ao longo de toda a minha formação, como registrei em coluna passada, deparei com professores revolucionários. Não no sentido ideológico que alguns fetichistas dos "costumes" geralmente apontam, mas no prático. Revolucionários porque conseguiam, dia a dia, promover educação minimamente reflexiva em escolas projetadas para serem quartéis, mas que só alcançaram o semblante do cárcere. Ainda assim, vivi episódios nos quais tentaram me ensinar a desaprender.

Em um deles, lembro sempre, a docente me acusou, diante de toda a sala, de mandar amigas copiarem a lição do quadro para mim. Isso porque, de acordo com ela, a letra em meu caderno era bonita demais para ser a de um menino como eu. Após tantos abalos psicológicos, infelizmente se pode desenvolver certa frieza que beira à indiferença e, com aparente calma, escrevi no canto da folha: "Esta letra é minha, professora".

O racismo, onde quer que esteja, existe para limitar um grupo e impedi-lo de existir ontem, hoje e amanhã. Se o há nas escolas, há genocídio cognitivo de crianças negras impedidas de desenvolver sadiamente o imaginário e potencial genialidade.

Até mesmo quando se consegue sobreviver a um sistema de educação também afetado pelo racismo estrutural, sistêmico, e institucional, a inteligência sempre será colocada em xeque desmedidamente. Um simples descuido gramatical ou uma crítica elaborada dentro das devidas complexidades do argumento são o suficiente para fazer de homens negros adultos novamente meninos numa eterna sala de aula a reprová-los.

"Hoje, muitos homens negros com boa educação sabem que não devem ser pensadores críticos e não tentam ser. Um homem negro, mesmo educado, que pensa criticamente, ainda é considerado suspeito pela cultura dominante", escreveu bell hooks (em tradução minha).

Pois que duvidem de nossas letras, mas não de nossas palavras.

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