Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Jovens no Brasil aguardam um acerto de contas com o ensino de matemática

Compreender a função também social dessa área pode ser o caminho para o desenvolvimento de outras inteligências

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Lembro como se fosse ontem. A sensação de ter que ir até o mercadinho da vila comprar algo a pedido da mãe e não saber contar o troco para conferir se estava certo causava nervosismo de fazer suar em dias frios. Com as moedas no bolso, apenas torcia para não ouvir: "Está faltando dinheiro, volte lá e avise o caixa!". Uma mistura de raiva com vergonha.

A matemática foi, no início dos anos escolares, matéria divertida. Parecia um jogo cujo desafio estava em usar das regras dadas para atingir o resultado certo. Aplicação, êxito ou falha. Conforme incluía mais sentenças, sentia que a mente trabalhava em busca de uma saída para situações de emergência. Como num labirinto.

Regras eram aprendidas, os métodos também, só que o sentido para o uso de tal aprendizado na vida concreta era eu quem tinha que atribuir. Isso, em certo ponto de minha deseducação, cobrou caro.

Alunos em escola estadual na zona leste de São Paulo - Zanone Fraissat - 18.out.21/Folhapress

Durante um dos anos do ensino médio, na primeira década de 2000, passei o ciclo de aulas inteiro sem docente de matemática. As aulas eram lecionadas por substitutos que quase nunca passavam exercícios da disciplina exata. Perdi muito —para não dizer tudo— que sabia até então das complexidades necessárias para dominar a matéria. Equações, porcentagens, estatísticas, teorema de Pitágoras. Absolutamente nada. Só o branco absoluto que se instalava a cada aula vaga.

Desde então, conforme me desenvolvia em outras áreas que não a matemática, senti-me como um analfabeto dos números. Fruto das escolas públicas de periferia, saí com várias faltas, mas essa com certeza foi a maior.

Quando prestei vestibulares, sem acesso a cursinhos preparatórios, questões matemáticas surgiam como perguntas sem resposta. Diante delas, a porta de entrada para o labirinto era também a de saída. Eu não avançava. Ao conseguir passar, deparei-me com "estatística" no curso de ciências sociais. Observava o professor e os números. O que via era o caixa do mercadinho e as moedas.

De tantas angústias que podem caber em uma pessoa, a de não saber, a de não entender mesmo querendo, precisando, é de transbordar. Sinto-me assim ainda, angustiado por não ter tanta afinidade com a articulação dos números. Entretanto, tenho para mim que este é um problema que será resolvido quando voltar a ter tempo para dedicar a mente aos labirintos matemáticos. Será o momento do acerto de contas.

Este jornal publicou recentemente matéria com pesquisa exclusiva que apontava apenas 5% dos jovens de escolas públicas brasileiras como capazes de se formar com aprendizado básico de matemática dentro dos conformes.

Há neste dado 1,9 milhão de mentes que se perdem na realidade limitante de uma educação precária que vem desde minha época —e das antes dela. Entre os motivos está a forma como se ensina. Aqui, lembro de algo que era frequentemente apontado por colegas de classe: "Não sei usar a matemática na vida nem por que ela é como é".

Lendo o professor Molefi Kete Asante, em "The Egyptian Philosophers: Ancient African Voices from Imhotep to Akhenaten" —ou os filósofos egípcios: vozes ancestrais africanas de Imhotep a Akhenten— deparei-me com o capítulo sobre os escritos de um camponês chamado Khun-Anup. Entre seus pensamentos registrados em um papiro de 2040 a.C, tratava ele também de Maat, figura divina e filosófica do equilíbrio, harmonia, verdade, ordem e da capacidade que opostos tinham de se complementar.

Cabia à deusa papel estruturante na civilização do Kemet e dela resultou saberes como o da matemática. Talvez —ou com certeza— ensinar a contar a partir da história contribua com o aprendizado reflexivo e significativo.

Compreender a função também social da matemática pode ser o caminho para o desenvolvimento de outras inteligências, afinal, aprender não se resume a decorar fórmulas. Se o resultado não bate, se o corredor do labirinto não apresenta saída, é sinal de que precisamos compreender a sentença para além da máxima "certo ou errado".

Eis aí o acerto de contas que milhares de jovens e adultos aguardam. Eu, inclusive.

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