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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Sexualidade e abuso

Consentimento é luxo de quem não se aliena ao desejo do outro

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Uma das cenas mais emblemáticas da condição sexual humana foi retratada por Almodóvar em "Dor e Glória" (2019). Nela, um menino de 9 anos fica perplexo diante da visão do corpo de um jovem adulto se banhando. A criança desmaia e cai de cama, vítima de uma febre inexplicável. Boa hora para lembrar que patologia vem de "pathos", se referindo à paixão e ao assujeitamento, ou seja, qualquer ideia de saúde mental que tenha como objetivo erradicar o patológico em nós, ignora do que somos feitos. As paixões nos movem e, vez ou outra, nos adoecem.

Trago a cena do filme de Almodóvar por considerá-la exemplar do nosso encontro estrutural com a sexualidade. Não se trata do encontro com o ato sexual, totalmente inapropriado entre adulto e criança. Tampouco o diretor insinua qualquer intenção por parte do jovem de seduzir o pequeno.

Cena do filme "Dor e Glória", de Pedro Almodovar - Reprodução

A cena tão cândida, quanto erótica, revela aquilo que rendeu a Freud mais de um século de "excomunhão": há sexualidade desde a infância. Aqui, sexualidade engloba a origem do que entendemos por prazer e por desejo a partir dos laços entre humanos. São nossos pais, mães e cuidadores que, na sua função de cuidar, despertam e apaziguam o prazer –e a dor– em nós.

O desmaio (falling in love, como se diz em inglês) e a febre do menino encenam o impacto do sexual –mais precisamente da pulsão– sobre um diminuto corpo. De tempos em tempos um encontro corriqueiro revela –como na cena do banho– o caráter intrinsecamente traumático do sexual.

Quando o sujeito não tem recursos para encarar a sexualidade, pode cair doente ou, no caso de um agressor, demonstrar ódio por quem deseja. A violência contra homossexuais, gordos, negros –sujeitos cujos corpos se supõe que não deveriam atrair– revela bem essa covardia diante da sexualidade.

Se o jovem do filme de Almodóvar tivesse se insinuado para a criança, estaríamos lidando com uma cena de abuso, responsável pelo trauma contingencial, ou seja, aquele que pode e deve ser combatido a todo custo.

Nessa hora, o trauma do abuso –situação hipoteticamente evitável– se liga ao que a sexualidade tem de traumática em si, estrutural e inevitável. Por isso, para elaborar certas violências, teremos que passar nossa relação com a sexualidade em revista, pois uma impacta na outra.

A vulnerabilidade física, social e psíquica (e a trapaça química do "boa noite, Cinderela") permite que pessoas sejam violadas por aqueles cujo prazer sexual não se dá na troca entre semelhantes, mas na usurpação do corpo alheio.

Além disso, abusos vão do ato de inequívoca violência até a zona cinza das relações sociais e dos jogos de poder, expondo situações paradoxais. "Isso é prazer + Dificuldade de Seguir Regras" e "Mau Comportamento" (2021), de Mary Gaitskill, recém-lançada em português pela editora Fósforo, eleva o nível da discussão sobre abuso e consentimento com seus contos ambíguos e desconcertantes. Gaitskill chega com quase três décadas de atraso em português, mas sem rugas, pois denuncia que um ato consentido pode camuflar abusos estruturais não reconhecidos. Ela traz à baila o longo processo de aprendizado infantil que invisibiliza violências e impede que sequer cogitemos nos defender. Compara o sofrimento decorrente do violento estupro que sofreu com uma relação sexual consentida –mas não desejada– na qual se perguntou se poderia ter dito não. Chega a considerar o segundo acontecimento mais perturbador. Sem encararmos ambiguidades como essa, pouco avançaremos na complexa questão do consentimento.

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