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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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A arte de calar a boca

Manter o relacionamento com filhos maiores requer abster-se

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Piera Aulagnier foi uma psicanalista que nomeou lindamente a função dos cuidadores junto aos bebês usando o conceito de "violência da interpretação". A palavra violência não está aí à toa e revela o paradoxo da situação. Não se trata de algo ruim que deva ser erradicado, mas da contradição própria que decorre de alguém ter que fazer a voz da criança, enquanto ela ainda não se apoderou da própria fala. Daí que Aulagnier chame os cuidadores nos primórdios de "porta-vozes", pois são eles que dirão se o bebê "está com frio", "com fome", "precisa de colo", "ficou com ciúmes" e outros palpites, que funcionam por tentativa e erro. Longe de imaginar que pais e mães deveriam saber o que o bebê quer de fato, o que se espera deles é que estejam atentos e implicados o suficiente em tentar atender a criança. Ainda que seja consolando-a por não conseguir descobrir o que ela quer.

Nada impede, no entanto, que o pedido de colo erroneamente interpretado como fome acabe por ser apaziguado na amamentação, dando a falsa impressão de que se sabia exatamente a demanda do bebê. É assim que a coisa funciona, e Deus nos livrem de tirar essa incumbência dos pais, desautorizando-os mais uma vez em seu papel de servir de anteparo entre a criança e o mundo. Cabe aos cuidadores essa ingerência nos primórdios.

Mãe e filha conversam, em imagem ilustrativa; busca por proximidade e intimidade é uma marca da geração atual de pais - Fotolia

Acontece que os filhos crescem e o exercício dificílimo de escuta, interpretação das suas necessidades e intervenção junto a eles tem que dar lugar a uma relação cada vez mais abstinente. É aí que a violência pode adquirir sua conotação negativa, quando ela nega os sinais claros da expressão da criança, ignorando-os. Existe uma diferença brutal entre dizer para criança que ela não pode xingar, gritar a bater e dizer que ela não está com raiva.

A interpretação nunca se extingue totalmente, pois não basta a aquisição das palavras para que a criança aprenda a nomear seus desejos e necessidades. É infindável o percurso de nomeação do que vivemos. Aliás, ajudarmos uns aos outros a colocar a vida em palavras é uma tarefa perene das relações humanas, claramente presente nas boas amizades.

Com o tempo, a rua passa a ser de mão dupla, com os filhos dando a real do que pensam sobre nós. Esqueça a propaganda enganosa de relação horizontal, de igual para igual, entre pais e filhos que se tornariam amigos. Relações entre pais e filhos podem ser suficientemente gratificantes sem que precisemos compará-las com amizades. As prerrogativas são outras, e não há demérito algum nisso.

A busca por proximidade e intimidade é uma marca da geração atual de pais. Mas preservar a relação nos anos nos quais separação e autonomia são imprescindíveis —adolescência e vida adulta— não é tão fácil. Há que se deixar obsolescer, deixar cair. Se você quer ouvi-los, base de qualquer relação próxima, há que silenciar.

Daí que toda nossa experiência, que nos parece tão fundamental de ser compartilhada, cairá em total descrédito se não for demandada. E mesmo quando nos pedem a opinião, vale ficar de sobreaviso, para não cairmos na armadilha do conselho que só serve para se fazer o contrário.

Sair da "violência da interpretação", necessária para que um bebê se torne humano, para o comentário abstinente é um exercício de respeito por quem está começando a viver a própria vida. Tem um quê de fazer das tripas coração e revela o tamanho da aposta em tudo que já foi feito até então: o que foi falado e, principalmente, o que foi demonstrado em ato.

Não podemos ser tão arrogantes a ponto de imaginar que a vida adulta seria impossível justo na vez deles, nos tornando imprescindíveis para sempre. Fantasia onipotente de quem não sabe a hora de passar o bastão, pondo o time a perder.

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