Antes de entrar no tema do cuidado dos filhos quero deixar claro que sou totalmente avessa a teorias que imputam às mães qualquer poder sobrenatural para cuidar. Se adquiriram tamanha proficiência, isso se deve à transmissão de conhecimentos entre gerações, expectativas sociais, experiência sendo cuidadas, identificações de gênero e muito treino. Insisto nisso para não fazer coro com ideais que consideram que a mulher tem poderes sobre-humanos no cuidado com os filhos, livrando a cara dos demais responsáveis.
Ainda assim, as mulheres têm sido as pessoas que se ocupam do corpo das crianças desde seu nascimento. Elas aprendem a sentir o bafo, ouvir chiado, examinar as fezes, a cor da pele, a avaliar temperatura, vivacidade, expressões de tristeza, alegria, sono, fome, medo, excitação muito antes do especialista começar a dar pitaco. Aliás, como sugeriu Winnicott, a depender da forma como entra o especialista, toda essa sensibilidade pode ficar inibida, gerando uma grande perda de competências adquiridas.
Embalada na experiência de cuidar de bebês ou crianças pequenas sozinhas, engatamos uma segunda marcha e seguimos escrutinando o corpo deles, agora separado do nosso, buscando adivinhar o sentido oculto em cada suspiro e balbucio. Quando não nascem do nosso corpo, fazemos o mesmo, não há vantagem nem desvantagem, só desafios. Aqui, todos os caminhos levam a Roma. Em geral, cuida-se dos filhos nesse nível por umas duas décadas, ainda que cada vez com mais restrições de acesso ao corpo deles.
A separação de corpos é uma das passagens cruciais dos cuidados ditos maternos, esses nos quais as mulheres se especializaram. Essa separação começa lá atrás, quando o bebê se recusa a aceitar o que vem dela, deixando claro que o corpo é dele, que devemos cuidar, mas com moderação. Aos poucos a criança impõe mais limites à ingerência da mãe.
Mas o exame médico, psíquico e pedagógico das mães continua a operar ao longo da vida com seu radar sobre a saúde e o humor. Nem bem tomou o café da manhã e ela já checou o sono, a alimentação, a disposição do pimpolho, mesmo na casa dos vinte e tantos anos. O processo costuma ser inconsciente e decorre da absoluta responsabilização que encarnamos no trato com eles e do amor, claro.
É óbvio que comemos inúmeras bolas, até porque nem sempre queremos saber o que se passa. Principalmente quando é algo que vai na contramão de nossas expectativas, ocasião na qual nosso excesso de afeto e proximidade nos impedem de enxergá-los. Nesse momento, tios, comadres, professores e terapeutas são ainda mais bem-vindos.
Enquanto a tirania do bebê impera, não há gratidão do lado da criança —e Deus sabe que nos piores casos a ingratidão pode durar a vida toda! Com a maturidade se espera algum reconhecimento e reciprocidade.
Confundindo cuidado com maternidade, há quem pense que sem a "titular da pasta" a infância fica comprometida. A resposta é, simplesmente, não. O que importa é a qualidade do cuidado e a dignidade com o qual é assumido. Muitos pais, avós e tios sabem exatamente sobre o que descrevo aqui e podem atestá-lo.
Como parar de se ocupar, cuidar e se preocupar ostensivamente depois de décadas? Com certo alívio de não ter mais que se dedicar integralmente a eles. Mas também com grande remanejamento da libido empenhada numa tarefa que se confunde com a própria juventude das mulheres. Essa operação bem-vinda se chama luto.
Ao se separarem os filhos, terão a chance de descobrir que tipo de "cuidadores de si mesmos" se tornaram.
Pergunta que as mães também terão que responder sobre si mesmas.
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