Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente

Quando filhos começam a falar

Sobre o alívio e o medo de ouvir o que eles têm a nos dizer

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É difícil deixar o filho na escola antes que ele consiga falar. Qualquer situação na qual nos separamos deles, antes que tenham o domínio da fala, tende a nos deixar com a pulga atrás da orelha. O choro, que seria um indicativo de mal-estar, nem sempre serve de medida, porque a partir de certa idade ele pode se prestar ao blefe, diminuindo a credibilidade do queixoso. Daí que a aquisição da fala, que denuncia perrengues, contrariedades e descuidos, pode ser um tremendo alívio para os cuidadores.

Um bebê pisa sobre um tapete
Um bebê pisa sobre um tapete - Rawpixel/Freepik

Minha filha, aos dois anos e meio, começou a frequentar a escola nos Estados Unidos, num curto período que moramos fora do Brasil. Na primeira semana, ela ia e voltava com a lancheira intacta, para minha preocupação. Por que não pedia o lanche, não apontava mostrando o que queria como havíamos conversado? No quinto dia, magicamente, não havia mais leite na garrafinha. Perguntei como tinha sido seu dia, ao que prontamente respondeu, "milk" mamãe. Não sei direito como se passou, mas a palavra obviamente cumpriu sua função aí.

Nem sempre queremos que eles falem, ou melhor, nem sempre estamos preparados para escutar o que têm a nos dizer. Para a psicanalista Piera Aulagnier, os pais cumprem a função de falar pela criança nos primórdios, ao que ela deu o nome de "violência da interpretação". Violência necessária desde que seja interrompida diante da autonomia da criança em expressar seus desejos. Aulagnier também lembra que com a aquisição da fala, o temor de pais e mães é ouvir o que elas têm a dizer sobre eles. Como não temer o clássico "eu te odeio" ou "você é a/o pior mãe/pai do mundo". Quem nunca ouviu isso de um filho tem que ter muito amor-próprio para acreditar que ele nunca pensou isso.

Conseguir se comunicar com os filhos é um grande perrengue que vai do choro incompreensível do recém-nascido até a bateção de porta adolescente. E que fique registrado que ninguém sabe o que o choro de um bebê pequeno significa. Atendê-lo é pura tentativa e erro. Tudo bem, porque não estamos ali exatamente para entender os filhos —e tampouco para que nos entendam. Estamos ali para garantir que, mesmo que não nos entendamos, nós não arredaremos o pé até que eles possam seguir sozinhos.

Na hora que a conversa passa a ser horizontal e fácil é tempo de seguir, revelando que no vídeo game da parentalidade, começou uma nova fase. Nela, a dependência física, moral, afetiva e material não é mais a base da relação.

Fica a pergunta, então, sobre o que resta. Vale parar para pensar sobre o que restou da nossa relação com nossos pais, o que nem sempre remete a conclusões reconfortantes. Depois de décadas de intensa relação, talvez só tenha sobrado ressentimento, desprezo ou franco desinteresse. Talvez tenham ficado rituais de cuidados, agora mútuos, a gratidão e a história comum recontada em cada encontro familiar.

Que reste amizade é pedir demais de uma relação tão assimétrica, mas pode ser que o gosto pela convivência e o prazer em continuar conversando perdure. Isso depende das imponderáveis afinidades comuns, mas também de abrir mão de controlar o corpo, a vida e o desejo um do outro. O que éramos obrigados a fazer, por força da função, passa a ser proibido, caso desejemos uma relação entre adultos.

A saída de casa lembra o tempo no qual os pequenos começaram a falar. Eles vão, e a forma como voltam, ou não, é a tão esperada resposta a tantos anos de dedicação.

Fica mais fácil se tiverem conhecido o significado da palavra amor.

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