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Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

Descrição de chapéu Mente imigrantes aborto

São necessárias muitas crianças para salvar uma aldeia

A gravidez indesejada só penaliza mulheres e homens trans, isentando quem insemina

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O provérbio africano "precisa uma aldeia para cuidar de uma criança" repetido "ad nauseam" revela que existem formas mais sábias do que a nossa para lidarmos com o futuro de uma sociedade. Propus a inversão do dito, porque a diminuição consistente do número de nascimentos tem acarretado efeitos econômicos, políticos e sociais desastrosos para a "aldeia". A ideia de que "quem pariu Mateus que o embale" nos impõe a questão de saber se teremos "Mateus" suficientes para empurrarem nossas cadeiras de rodas ao apagar das luzes. A gradativa diminuição da população economicamente ativa nos países desenvolvidos faz da aposentadoria e de uma economia minimamente estável miragens.

Resta contar com os imigrantes, aquele estrato social cuja produtividade é explorada sem contrapartida econômica e social. São eles que vão trabalhar e ter os filhos que os demais não têm, mudando o perfil étnico de populações que ainda têm a empáfia de se orgulhar de sua "pureza" racial. Basta ir às grandes capitais da Europa para ver como a paleta de cores humanas foi se modificando nas últimas décadas.

Ainda numa posição majoritariamente subalterna, os negros retintos que circulam pelo velho continente, oriundos de antigas colônias e outros localidades, retornam para os países que costumam dispor de suas pátrias como dispõem de seus corpos para o trabalho mal remunerado e insalubre. São eles que mais uma vez salvam as economias mundiais com seu trabalho e descendência, sendo tratados como cidadãos de segunda classe.

Na base dessa pirâmide temos as pessoas que gestam e parem, sejam mulheres sejam homens trans. As pessoas das quais a "aldeia" depende para não se extinguir, seja porque colocam crianças no mundo, seja porque se ocupam prioritariamente delas, e que são as mais desprezadas entre nós. Como efeito do descaso e do colapso na economia de cuidados, acabam por fazer uma "greve de úteros" silenciosa e consistente mesmo quando desejam ter filhos. O acúmulo das funções de provedora de cuidados e provedora financeira para as mães de família é uma das violências históricas do capitalismo, mas se torna insustentável com a lógica neoliberal do cada por si e ninguém por todos.

Algumas pessoas não desejam ter filhos e não há nenhuma necessidade de se justificarem quanto a isso. Algumas abrem mão em função da falta das condições sociais, políticas, econômicas e emocionais para realizar esse desejo.

Por outro lado, a gravidez indesejada só penaliza mulheres e homens trans, isentando moral e juridicamente quem insemina. Por esses casos lutamos incessantemente pelo direito à interrupção da gestação. É bom lembrar —como fez o Pastor Henrique Vieira em fala contundente na Câmara dos Deputados— que o Estado é laico e as opiniões religiosas não cabem na discussão sobre a descriminalização do aborto.

A violência com quem deseja abortar —impedindo, criminalizando, desassistindo, deixando morrer— é da mesma natureza da falta de apoio a quem deseja ter filhos. Ambas são fruto de hipocrisia, do falso moralismo e das políticas reprodutivas baseadas em estereótipos machistas. São ecos da fantasia de que bebês são entregues por cegonhas —sem responsabilidade dos homens— e criados pela mãe natureza e não por pessoas reais tentando sobreviver dignamente.

Se continuarmos deixando Mateus cair do colo, não haverá aldeia para contar a história.

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