Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente

Poderes reprodutivos e suas armadilhas

Enaltecemos a maternidade ao mesmo tempo em que maltratamos as mães

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Segundo a antropóloga Rita Segato, todas as sociedades enaltecem a maternidade ao mesmo tempo em que maltratam as mães —ainda que cada uma o faça do seu jeito. A razão desse aparente paradoxo é que a idealização serve justamente para colocar debaixo do tapete a realidade que preferimos ignorar. Como o tapete é sempre curto, o ignorado retorna na forma de violência e adoecimento. Movimentos de empoderamento de mulheres correm o risco de, inadvertidamente, caírem na mesma armadilha. Para evitá-la temos que levar em consideração os diferentes lugares nos quais a idealização da maternidade, erroneamente reduzida à genitora, se ancora.

Mulher negra grávida
Mulher negra grávida - DCStudio/Freepik

A possibilidade de gestar, parir e amamentar é realmente espetacular e requer todo respeito e cuidado que uma sociedade possa dispensar. Nada mais indigno do que um povo que despreza aqueles através dos quais surgem as novas gerações. Nós somos esse povo. Para compensar o absoluto descaso, é tentador carregar a mão num suposto caráter sagrado da maternidade. Mas depositar poderes sobre-humanos nessa experiência cobra seu preço, até porque não há nenhuma garantia de que passar por ela nos transformará em boas mães.

Convalescer do parto —geralmente cirúrgico— e elaborar a separação de corpos é uma trabalheira a mais para aquela que, além de tudo, acaba se tornando responsável sozinha pelo que se passa com a criança depois desse feito gigantesco. Para os demais, não agraciados com o útero, a conta chega pelo lado inverso: a suposição de que seriam menos talhados para a função de amar e criar filhos do que a genitora. Pode ser devastador quando se é pai ou mãe que não pariu, ou conveniente, quando se quer livrar-se da responsabilidade pelos filhos colocados no mundo.

Lutar sem trégua pela proteção e cuidado das pessoas que gestam e parem é pauta urgente, visto que um grande número vive a perinatalidade em condições de guerra: nas ruas, desassistidas, em situação de extrema pobreza e vulnerabilidade. A outra parte pode ter melhor situação material, mas também é oprimida por imperativos ideológicos e pelo desamparo social. A carga mental está aí para revelar quem é verdadeiramente responsabilizado pelo que se passa com os filhos ao longo de toda a vida.

Faz parte da luta por defender os cuidados com a perinatalidade e a equanimidade de gênero evitar reforçar os estereótipos que aprisionam mulheres em uma categoria oprimida. A misoginia se alimenta da premissa —construída entre os séculos 18 e 19— de que a anatomia feminina encerraria um ser absolutamente diferente, complementar ao homem e cuja grande potência se revelaria na reprodução. Para compensar o que as mulheres perderam socialmente resta a exaltação dos prodígios de um corpo que pari —bola de ferro atada ao pé, que alguns acharam por bem abraçar. E é aí mesmo que —quem diria?— pode retornar o modelo de virilidade de nossa época: fantasia do poder da vontade —ignorando o inconsciente— e do poder sobre o outro que enseja a conhecida guerra por prestígio.

Acabar com a opressão contra as mulheres não é inverter opressor-oprimido, mas lutar para que o próprio ato de oprimir seja inibido, ou seja, que o próprio sistema sexo-gênero seja atacado. Daí a importância de ter como aliados os movimentos que lhe fazem oposição.

O narcisismo das pequenas diferenças apontado por Freud, mal disfarçado em alguns discursos militantes, revela que a sanha machista de apontar dedos e estar acima do outro faz escola entre homens, mas também entre mulheres, trans, cis, gays, enfim. Se for essa a escolha, não chegaremos a nenhum lugar juntos. Correção, juntxs.

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