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Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

Descrição de chapéu LGBTQIA+

A universidade e o tribunal identitário

A instituição que resistiu ao bolsonarismo resistirá também ao identitarismo?

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Uma colega foi acusada de transfobia e racismo por ter errado o gênero de um adjetivo dirigido a uma aluna trans que via pela primeira vez em sua aula, por tê-la confundido com um homem gay. Sim, usar equivocadamente "chateado" em vez de "chateada" disparou uma espiral de insanidade na qual a professora foi acusada, julgada pelo coletivo, condenada e severamente punida, tudo em menos de 24 horas.

Em discussão que se seguiu ao equívoco, gravada, a aluna sustenta três teses. Que a relação pedagógica é um piquenique igualitário em que alunos e professores levam o que têm e todos se sentam para compartilhar; que o aluno que pertence a uma minoria "historicamente subalternizada" tem prerrogativas pedagógicas que o põem acima do docente, inclusive a de realizar sua própria "curadoria" das fontes usadas na disciplina, recusando os autores brancos e europeus que constam da bibliografia; que qualquer atitude de contestação ou crítica da interpretação ou da "curadoria" do estudante é destituída de função pedagógica, constituindo-se, ao contrário, em uma ofensa inaceitável ao aluno pertencente à minoria.

Atitude para a qual, aliás, a única resposta decente é a denúncia pública, a acusação de um crime identitário grave —racismo, transfobia, misoginia, assédio— e, naturalmente, o pedido de demissão do docente, conforme o roteiro desta semana.

No caso, a professora que cometeu o crime hediondo de errar a identificação de gênero da estudante não é transfóbica nem racista, todo mundo sabe disso. A gravação da aula o demonstra sem sombra de dúvida. Mas que importa?

O justiçamento dos identitários, mormente o da minoria trans, é o processo judicial mais célere do mundo. O acusador é também o juiz que julga, condena e expede a sentença, assim como é a mão pesada que se encarrega da punição.

Do ponto de vista do identitário radical, não há arbítrio, violência ou possibilidade de erro nesse procedimento.

Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 19 de setembro de 2023 - Ariel Severino

Como poderia haver arbítrio se o "corpo historicamente subalternizado" está reagindo à brutalidade histórica e estrutural que contra ele se exerce? Que se dane se essa pessoa singular não praticou crime algum. Como sabia o lobo da fábula de La Fontaine, há sempre alguma boa razão para se fazer o que já se queria fazer quando se é o mais forte.

O lobo sempre tem razão.

E como assim violência? "Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem", recitam os que afiam as facas. Erro? Que erro? Uma pessoa trans não se engana, ainda mais quando há um coletivo ao seu redor que jura que viu o que ela viu e que, se não viu, considera ser mais do que provável que tenha ocorrido, vez que todo mudo sabe que a universidade é um lugar extremamente opressor.

Por fim, para que correr o risco de inocentar um culpado apenas pela leviandade de querer salvar um inocente?

Um dos lugares mais insalubres para se trabalhar hoje são as universidades. Ao menor interesse contrariado, à menor reivindicação de hierarquia pedagógica, à mera indicação de bibliografia pode corresponder uma acusação de gravíssimo crime identitário. Crime hediondo, sentença automaticamente cumprida.

Nem Kafka previu coisa assim.

Complacente com a sua cria, nem o espírito de corpo típico do ambiente acadêmico vem em socorro dos acusados-condenados-punidos, nem sequer para pedir que tenham um julgamento justo ou que o linchamento ocorra depois de apurados isentamente os fatos.

O aluno deve ser acolhido, os professores que lidem com os leões. O cartaz e a pichação ficam na parede, o dedo na cara, o cerco, o centro acadêmico cúmplice, o docente tratado como pária e criminoso na casa em que trabalha há dez, 20 anos, tudo acontece sem que qualquer reação institucional se esboce.

A minha colega teve sorte de alguém estar gravando a aula. E, mesmo assim, vários docentes se alinharam automaticamente à acusação. Na instituição, toda aquela valentia corporativa contra o bolsonarismo reduz-se ao silêncio intimidado ante a corporação identitária.

Apesar da gravação, a militância identitária corre às ruas e às redes para fazer exatamente o que fazia o bolsonarismo: continuar a difamar a docente e a universidade e a destilar o seu ressentimento contra a instituição.

Troque doutrinação ideológica por doutrinação patriarcal e colonialista, e ideologia de gênero por ideologia da heteronormatividade ou da cisnormatividade, e veremos o identitário radical usar a mesma matriz acusatória do bolsonarismo. E retaliar a universidade, que, no fundo, detesta, de um jeito que o bolsonarismo apenas sonhou poder fazer.

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