Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes
Descrição de chapéu universidade

Censura virou obsessão nacional

Em nome de valores e princípios sublimes, grupos radicalizados constrangem, denunciam e calam

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Uns são barrados em universidades e feiras literárias por serem "fascistas", outros não devem ser lidos por estudantes, uma vez que são "esquerdistas", já houve quem não pudesse ser publicado em jornais porque "supremacista".

Outros ainda foram denunciados, expostos e boicotados por estampar em quadros, materializar em performances ou representar em vídeos a sua "arte degenerada", na tentativa de "corromper as criancinhas", praticar "pedofilia", promover "ideologia de gênero", "induzir à homossexualidade" ou fazer "doutrinação ideológica".

Manifestante segura crucifixo. Atrás dele, grupo segura faixa, com dizeres cortados que parecem dizer "não à ideologia de gênero"
Manifestantes tentam impedir a realização de palestra de Judith Butler no Sesc Pompeia, em São Paulo, em 2017 - Bruno Santos/Folhapress

As expressões estão entre aspas justamente para dizer que ações e pessoas são classificadas desse modo não com base em evidências indiscutíveis ou em uma interpretação realizada com independência. São decisões políticas. Rotular é marcar e desqualificar o outro como inimigo da nossa posição ideológica, para melhor vencê-lo.

Não ouvir as vozes que nos incomodam virou uma obsessão nacional, principalmente dos grupos mais radicalizados. A cada dia, uma nova bula de excomunhão, uma nova lista de pessoas com quem não devemos falar ou que não devemos ouvir e uma nova agenda para a militância dos bons: impedir, denunciar, constranger, calar. Tudo em nome de valores e princípios sublimes.

Quando se critica o padrão disseminado de intolerância, todas as facções usam como escudo a alegação de que estão sendo vítimas de falsa simetria e consideram um ultraje a sua posição ideológica ser comparada com a dos seus vis inimigos.

Não se trata, porém, de ideologia, mas de atitude política. Pode-se ter louváveis propósitos emancipatórios e humanistas, mas adotar-se atitudes deploráveis. De boas intenções ideológicas, está pavimentado o inferno político.

Isso tudo é ao mesmo tempo reforço e sintoma de radicalização. A disposição a negociar cai, e o reconhecimento da legitimidade democrática do outro desaparece. Sobram inimigos e não mais divergentes ou adversários, pois no nosso projeto de sociedade não há espaço para gente dessa espécie. A tolerância é vista como complacência com o mal e o pluralismo como conluio com o pecado.

A virtude não está mais no meio, mas em um dos extremos, o nosso. A moderação não é mérito, mas demonstração de fraqueza, covardia e indulgência. No radicalismo, habitam a autenticidade, a pureza de convicções e a generosidade. Na moderação, fazem morada a hipocrisia, a corrupção (pois se transige com o mal) e os nocivos interesses ocultos e negados. Quem pede para baixar as armas é, evidentemente, colaboracionista.

Mas o que está por trás da vontade de censurar e condenar que envenena a esfera pública política, ataca fundamentos democráticos e nos prende a um pesadelo político que parece não ter fim?

Recomendo o foco nas premissas que sustentam as atitudes.

Os radicais acreditam que determinadas mensagens, ideologicamente erradas, são capazes de produzir um estrago imenso, não em nós, mas nos outros, se não houver meio de impedir que as pessoas a elas se exponham. O parâmetro que mede a nocividade da mensagem é dado por nossas convicções. Calcula-se a distância moral e intelectual entre o que acreditamos ser o certo e o que o nosso adversário ou inimigo ensina ou prega: quanto mais longe de nós, mais errado ele está, mais perigoso o que ele diz.

A escala nunca é mero cálculo intelectual das divergências entre as diferentes visões de mundo, é também moral: o erro cognitivo também é uma imoralidade. O que, por si só, justifica a nossa indignação e aciona nossos sentimentos: diante da falha moral e cognitiva, o sangue nos sobe à cabeça e a raiva moralmente autorizada sente-se à vontade para se manifestar, inclusive como violência.

O passo seguinte é admitir que, embora a mensagem do nosso inimigo não nos cause mal, as outras pessoas são vulneráveis diante do seu conteúdo. Falta-lhes malícia e formação. Não são más, mas ingênuas, manipuláveis ou desinformadas.

O mal lhes é uma tentação constante, por ser astuto, claro, mas sobretudo por haver uma natural propensão humana ao pecado, às escolhas erradas, a buscar o caminho fácil. Quanto mais os outros são diferentes de nós (pobres, crianças), mais suscetíveis à sedução do mal, mais vulneráveis aos seus apelos e mais protegidos devem ser.

Nós somos insuscetíveis aos esforços persuasivos do inimigo, pois somos melhores que as pessoas em geral —por formação, têmpera ética ou sagacidade. Por isso mesmo, temos a missão moral de salvá-las, ou evitando que se exponham à doutrina malsã, calando a boca do adversário, ou por meio de ações corretivas, quer dizer, da denúncia dos interesses camuflados dos inimigos e do desmascaramento das suas más intenções.

É nossa missão evitar que as ovelhas se percam e o mal prevaleça. Por amor e por virtude é que censuramos. Amém.

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