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Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

Crise de abstinência

Você nunca imaginou que sentiria falta da rotina aborrecida do aeroporto

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“Computador na mochila, senhor?” “Primeiramente vamos embarcar as prioridades por lei.” “Em caso de despressurização, máscaras de oxigênio cairão automaticamente do teto.” Confessa que você está com saudade de ouvir essas coisas.

Passageiros fazem check-in no aeroporto de Singapura usando máscaras e respeitando o distanciamento de segurança - Roslan Rahman/AFP

Saudade talvez seja uma palavra forte demais. Mas eu aposto que você nunca achou que sentiria falta de ouvir uma delas —umazinha que fosse. E de levá-las a sério, como se as escutasse pela primeira vez.

No despacho de bagagem, o suor frio para que ninguém perceba que seu volume de mão pesa mais que sete quilos? Uma preocupação distante. Procurar, entre as centenas de prints no seu celular, o código QR do voo que já está embarcando? Que doce tortura!

A falta que você, viajante, sente da rotina de um aeroporto (que, até quatro meses atrás, você achava aborrecida) ganha nestes meados de junho de 2020 contornos de uma fantasia delirante. Como numa crise abstinência.

Se fosse lhe dada a chance de estar ali na fila do raio-X, de tanta vontade que você está de viajar, tenho certeza que perdoaria o executivo que se esqueceu de tirar o cinto para não apitar o detector de metais.

Bem como o adolescente que discute com o encarregado porque quer passar com seu skate. Ou ainda a relações públicas que não se conforma de ter de tirar a bota numa manhã fria.

O nauseante cheiro forte de pão de queijo, inevitavelmente misturado com o olor da calda açucarada da barraquinha de castanhas quentinhas invade seu nariz com nostalgia. O café, mal tirado e caro, é sorvido como um néctar —e você nem pede seu troco para R$ 20.

O bizantino ritual dos grupos de embarque, além das supracitadas prioridades garantidas por lei, em constante mudança (de uma companhia aérea para outra ou mesmo de uma temporada para outra) nem chega a incomodar. Aliás, fazem você até se esquecer de que sua poltrona, a única que sobrou quando lembrou de fazer o check-in pelo aplicativo saindo de casa, é a do meio.

O espaço confinado nas horas passadas no ar (com um pouco de sorte, apenas alguns minutos), que geralmente insistia em te lembrar que seu corpo é alto demais, largo demais, arredondado de menos, eternamente desproporcional àquele encosto, te remete ao conforto de um spa.

O ronco do vizinho, o chute da criança que está atrás, o volume do celular do passageiro que insiste em ver um seriado sem fone de ouvido, a conversa gritada das duas amigas que não se viam há tempos e até a gentileza automática da pergunta “biscoito doce ou salgado?” —nada disso vai interferir no descanso até o seu destino.

Nem mesmo o eventual piloto tagarela, que preferia estar num palco de stand-up.

Na chegada, você nem se irrita com a pessoa que está na primeira fileira, mas teve que deixar sua bolsa no espaço para bagagem em cima da D8, atrasando assim todo o desembarque. E, na porta do avião, você solta um agradecimento sincero e carinhoso para a tripulação que se despede.

Sua mala certamente será uma das últimas a despontar por trás das tiras de borracha que penteiam a esteira de bagagens. Mas você não está nem aí: tamanha é a falta que sente dessa rotina que tudo, todas as agruras de voar, serão perdoadas no dia em que você puder viver isso de novo.

O mundo a essa altura tem muito mais com o que se preocupar do que com essa melancolia romântica de quem deixou de viajar no seu dia a dia. Enfrentamos, sobretudo no Brasil, uma absurda crise sanitária, para não falar da econômica e política.

Antes de pensar nas próximas férias, temos o dever de lembrar que estamos sozinhos diante de uma pandemia e suas consequências. Entre elas, uma necessária afronta ao racismo na sociedade, atroz no passado, inaceitável no presente.

No entanto, ciente disso tudo, permito-me hoje a liberdade de poder brincar com a ideia de que nossos piores pesadelos como viageiros se tornem, pelo menos por um dia, aquilo que gostaríamos de viver.

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