Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

O mundo de cabeça para baixo

Assistir a uma série filmada em Paris mata as saudades da cidade e do simples ato de caminhar pelas ruas sem limitação

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Entre os raros prazeres do isolamento —preciso reforçar o quanto ele está sendo doloroso para os que, como eu e você, amam viajar?—, encontrei uma série francesa chamada “10%” na Netflix.

A entrada do Museu do Louvre, em Paris, cidade que enfrenta isolamento social por causa da Covid-19
A entrada do Museu do Louvre, em Paris, cidade que enfrenta isolamento social por causa da Covid-19 - Kenzo Tribouillard - 21.mar.2019 /AFP


Não, não é sobre viagem, aliás, estou para achar alguma coisa boa no streaming sobre essa nossa paixão. Mas essa se passa em Paris. E só por isso já merece nossa atenção.

A cidade, diga-se, é apenas um pano de fundo —se bem que, quando se trata de Paris, pano de fundo é a metáfora mais tola para o maior destino turístico do mundo.

O que quero dizer é que o universo de “10%” é o das estrelas do cinema francês, com as histórias girando em torno dos agentes que trabalham para esses artistas. (Os “10” são a comissão que eles cobram por encaixá-los num projeto.)

Os escritórios da agência ASK ficam bem no centro histórico, pertíssimo da rue de Rivoli, onde os personagens principais, justamente os empresários dos talentos, estão sempre circulando. (Ironicamente, os grandes nomes das telas francesas se revezam em pontas a cada episódio fazendo o papel deles mesmos.)

Apesar da fachada do prédio aparecer com destaque, não tenho certeza do endereço correto, mas eu diria que é ali perto do Palais Royal e do Louvre.

Esse é, porém, um detalhe menos importante para quem, além de acompanhar uma boa história (e cada uma delas é divertidíssima!), mata suas saudades de Paris olhando as cenas gravadas fora dos estúdios, em locação.

Inúmeras vezes voltei cenas para tentar identificar um trecho de rua, um jardim, uma esquina. Em outros momentos, deixo simplesmente meu olhar me levar por aquele cenário que é tão lindo e me faz tanta falta.

Outro dia, numa sequência final, os personagens, depois de um jantar de confraternização, saíram a pé do restaurante voltando para suas casas. A assistente mais jovem entrou num metrô. Dois agentes dividiram um táxi num ponto da Rivoli. Outros quatro foram andando pelo rio Sena.

Dois deles ficaram para trás, caminhando mais lentamente enquanto falavam de amor. E outras duas seguiram em frente, cruzando uma das pontes que liga a margem direita do rio à ilha de St. Louis.
A cena em si não era nada demais, mas foi suficiente para conseguir me deixar atordoado de saudades.

De Paris, claro. Mas também de um simples ato como o de caminhar. E caminhar, claro, naquela que é talvez a cidade mais perfeita para isso.

Li na última revista The Economist que os parisienses que praticam “le jogging” pelas ruas da cidade, uma vez que seus parques estão fechados, agora não o podem fazer entre 10h e 19h, para evitar encontros com quem tem que sair de casa (com autorização!) para suas necessidades diárias.

Nem isso podemos mais: correr livremente pelas ruas ou simplesmente caminhar. Em Paris, Bancoc, Madri, Nova York, Singapura, Nova Déli. Mesmo onde você mora. E não sabemos lidar com essa terrível limitação.

É como se o que mais nos torna humanos, essa capacidade de interação, fosse tirado temporariamente de nós. Como se o mundo estivesse de cabeça para baixo.

Temos mais de um motivo para achar isso. Da marcha dos insensatos que exige um retorno à “vida normal”, ignorando os riscos da epidemia ali na esquina, às inacreditáveis declarações e provas de ignorância que ouvimos constantemente daqueles que deveriam nos guiar na vida pública com um mínimo de tranquilidade e segurança.


Há um dólar em disparada, cuja única vantagem é o escárnio de ver quem apostou que ele iria baixar se calar nas discussões. Há um desprezo pelo ser humano inimaginável mesmo nas épocas mais obscuras da nossa dita civilização. Há a sufocante sensação de que nenhum aprendizado tem valor.
Porém, quanto mais parecemos longe da razão, mais busco nela uma bússola.

E, se o mundo parece ter perdido seu eixo, conto com seus campos magnéticos para que retome o prumo. E que a gente possa sair andando por ele como os personagens de “10%”. E que cada calçada que a gente retome seja uma Paris só sua.

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