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Na linha de frente contra o coronavírus, tem que ter sangue no olho, diz enfermeira alvo de fake news

Vídeo que profissional da Bahia fez de UTI vazia em março foi usado nas redes para minimizar importância da pandemia

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Salvador

Exaurida física e emocionalmente, enfrentando plantões que chegam a 24 horas em leitos de terapia intensiva de pacientes com a Covid-19, a enfermeira baiana Ana Cássia Tupiniquim, 52, ganhou mais um problema para enfrentar nesta semana.

Um vídeo que ela gravou em março, relatando a situação no hospital Couto Maia, referência para Covid-19 em Salvador, foi retirado de contexto e passou a circular um mês depois em redes sociais de militantes do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

O caso ganhou tamanha dimensão que o gabinete da Presidência da República procurou nesta quarta-feira (22) a secretaria de Saúde da Bahia pedindo o telefone da enfermeira. O governo baiano não retornou ao pedido.

A enfermeira baiana Ana Cássia Tupiniquim, que foi alvo de fake news - Arquivo Pessoal

A história começou em 21 de março deste ano. Com 26 anos de experiência na profissão, Ana Cássia Tupiniquim estava diante de desafios mais difíceis de sua carreira: o hospital Couto Maia, onde trabalha, se tornaria uma das unidades exclusivas para tratamento da Covid-19 na Bahia

A enfermeira sacou o celular na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) e gravou um vídeo para tranquilizar amigos e parentes, mostrando os novos leitos do hospital. E afirmando que havia apenas dois pacientes suspeitos de ter a doença.

“Como vocês podem ver, hoje é dia 21, a UTI está vazia e totalmente equipada. Equipamentos de ponta, monitores e respiradores em todos os leitos. Então, fiquem tranquilos. Vamos nos precaver, não existe essa agonia que o pessoal está falando”, disse a enfermeira no vídeo.

Um mês depois, o vídeo começou a circular em redes de militantes bolsonaristas acompanhados de uma mensagem com três informações falsas: ela se chamaria Sandra, ela teria sido demitida e o vídeo teria sido gravado em 21 de abril.

Não há dúvida que o vídeo foi gravado antes de 21 de abril —a Folha encontrou registros de sua publicação em uma rede social no dia 22 de março.


Ao contrário do que há mais de um mês, o Hospital Couto Maia enfrenta hoje outro cenário. A unidade de saúde atualmente está com uma ocupação de 80% dos seus 50 leitos de UTI e dos outros 50 leitos de enfermaria.

A profissional tampouco foi demitida, como se afirmou nas redes sociais. Na manhã desta sexta-feira (24), Ana Cássia entrou em mais um plantão de 24 horas na UTI do hospital.

Antes, em conversa com a Folha, lamentou a disseminação do vídeo com informações e datas fora de contexto. E classificou como absurda postura de pessoas que disseminam fake news, sobretudo envolvendo profissionais que estão no enfrentamento à pandemia.

“Costumo ser forte, guerreira, mas essa situação me abalou profundamente. Imagine o que é estar no meio da luta contra uma doença e ter que lidar com uma situação dessas? As pessoas espalham inverdades de forma intencional, na maldade, para defender questões políticas”, disse a enfermeira.

Ela conta que gravou o vídeo justamente para combater uma fake news. Na época, circulavam em redes sociais informações falsas de que o Hospital Couto Maia estaria superlotado, com pacientes desassistidos e funcionários sem equipamentos de proteção.

Para mostrar que a situação era o oposto, resolveu gravar as imagens. “Era para ser uma coisa interna, mandei só para minha família. Mas o vídeo escapou por alguém e acabou viralizando de uma forma errada”, diz.

Um mês depois de gravado o vídeo, Ana Cássia tem enfrentado dias difíceis trabalhando nos leitos de terapia intensiva, onde dá plantões de 24 horas a cada três dias. “É sempre aquele plantão de terror. Uma hora é um que tem que intubar, na outra é outro tem que desfibrilar. A gente não para.”

Diz que perdeu vários pacientes na batalha contra o novo coronavírus. E classifica a Covid-19 como agressiva, violenta e letal. “Quem está trabalhando, na linha de frente mesmo, tem que ter muito sangue no olho."

Com experiência em leitos de terapia intensiva e pós-graduações nesta área, a enfermeira tem atuado também no treinamento de profissionais de saúde que passaram a trabalhar com pacientes de Covid-19.

Tamanha é sua rigidez com os procedimentos para evitar a contaminação que ela ganhou entre os colegas o apelido “enfermeira do não me toque”. Até o momento, não houve casos de contaminação de profissionais de saúde no Couto Maia.

Em casa, onde ela mora com o filho de 11 anos, tem cuidados redobrados. Lembra que a doença pode atingir e gerar complicações em qualquer um, não apenas idosos ou pacientes com doenças pré-existentes.

Os colegas têm a mesma visão. A diretora do Hospital Couto Maia, Ceuci Nunes, lamenta que parte da população negue a gravidade da pandemia e ainda compartilhe informações falsas em meio ao enfrentamento do coronavírus.

“É muito perigoso. Uma informação errada pode induzir as pessoas a afrouxar os cuidados e tomar atitudes que as coloquem e a outras pessoas em risco. As pessoas têm que entender que estamos no meio de uma operação de guerra”, diz.

Sobre o vídeo, ela diz que os funcionários não têm autorização para gravar imagens das dependências do hospital, mas afirma que não viu má-fé na atitude da enfermeira. Por isso, ela não sofreu sanção e permanece trabalhando.

Prestes a entrar mais um plantão, a enfermeira Ana Cássia recomendou que as pessoas fiquem em casa e se cuidem.

Também defendeu que, em meio a uma pandemia, nada deve ser mais importante que a vida das pessoas: “Política vai e volta. Economia vai e volta. A saúde, não. Morreu, não tem mais como voltar”.

Desligou o celular, vestiu jaleco, luvas, máscara e óculos. E entrou no plantão para mais um dia de batalha.

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