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Descrição de chapéu The New York Times

Para cadeirantes, viajar de avião é embaraçoso, desconfortável e arriscado

Para mostrar as dificuldades enfrentadas por esses passageiros, jornal documentou a experiência de um norte-americano em dois voos recentes

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Amanda Morris
The New York Times

Charles Brown sempre gostou de viajar de avião. Sua paixão por voar evoluiu com o tempo, passando de construir aeromodelos quando era garoto para fazer treinamento em artilharia de aviação quando entrou para o Corpo de Marines americanos, em 1985. Sua carreira militar terminou abruptamente um ano mais tarde, quando ele mergulhou numa piscina, bateu a cabeça no fundo e lesionou a coluna. O resultado foi uma paralisia incompleta de seus braços e pernas.

Hoje Brown usa cadeira de rodas. Devido à sua deficiência física, viajar de avião passou a representar risco para ele. "Hoje em dia, quando vou andar de avião, é literalmente questão de pensar bem: ‘Ok, o que preciso fazer para conseguir passar por este dia sem sofrer uma nova lesão?’", contou.

Na primeira viagem aérea que fez depois de ficar paraplégico, Brown sofreu uma concussão durante a aterrissagem. Ele não conseguia se manter com a coluna ereta, e sua cabeça se chocou com o assento da frente. Em outro voo, alguns anos atrás, dois funcionários da companhia aérea o deixaram cair quando o estavam levando para colocá-lo numa cadeira de rodas especial feita para transitar no corredor do avião. Foi uma queda dura. Ele quebrou o cóccix e passou quatro meses no hospital combatendo uma infecção que pôs sua vida em risco.

Charles Brown na cadeira especial da companhia aérea, feita para transitar no corredor do avião - Scott McIntyre - 5.mai.2022/The New York Times

Há também o receio do que pode acontecer com sua cadeira de rodas, que custou US$ 41 mil (cerca de R$ 210 mil), quando é colocada e tirada do avião. Feita sob medida para Brown, a cadeira lhe permite evitar escaras. Sem ela, ele correria risco de sofrer outra infecção que poderia colocar sua vida em risco.

Não é incomum que empresas aéreas percam ou danifiquem cadeiras de rodas. Em 2021, pelo menos 7.239 cadeiras de rodas e andadores motorizados foram perdidos, danificados, chegaram com atraso ou foram roubados em voos das maiores companhias aéreas americanas, segundo relatório de consumidores de viagens aéreas. São cerca de 20 incidentes por dia.

Mesmo em um voo em que tudo transcorre tranquilamente, Brown sofre múltiplas indignidades desde o momento em que chega ao aeroporto até o momento de sair, principalmente devido à falta de acessibilidade para pessoas com deficiência.

Ele e outros defensores dos cadeirantes argumentam que boa parte disso poderia ser evitado se os aviões e aeroportos fossem projetados para receber passageiros cadeirantes.

Para ter uma visão em primeira mão das dificuldades enfrentadas por passageiros cadeirantes, o jornal The New York Times documentou a experiência de Charles Brown em dois voos recentes, pela American Airlines, de Palm Beach, na Flórida, para San Antonio, no Texas —com conexão em Charlotte, na Carolina do Norte. Segue um relato do que vimos.

Check-in e segurança

Brown chega e encontra seu companheiro de viagem diante do Aeroporto Internacional de Palm Beach às 7h25, três horas antes da partida de seu primeiro voo do dia. (Ele disse que geralmente chega bem cedo porque cada passo do processo leva mais tempo para ele.) Quando entra, cumprimenta com um soquinho os funcionários do aeroporto que levam sua bagagem para o balcão de check-in. Presidente da entidade Veteranos Paralisados da América,, Brown viaja de avião frequentemente a trabalho e já ficou amigo de vários funcionários do aeroporto de Palm Beach, que já conhecem suas necessidades a fundo.

Charles Brown chega ao aeroporto de Palm Beach, na Florida, para viajar para o Texas - Scott McIntyre/The New York Times

Os balcões de check-in ficam acima de Brown, que é obrigado a debruçar-se sobre a balança de malas para dizer a um funcionário que sua cadeira de rodas feita sob medida pesa 188 kg, informação que ele já preencheu num formulário quando reservou a passagem. Brown também manda como bagagem uma cadeira de rodas própria para usar no chuveiro, uma bolsa médica e uma segunda mala.

Brown é revistado pessoalmente por um agente a cada vez que embarca num avião. Ele estende os braços enquanto o agente passa as mãos sobre ele rapidamente, percorrendo suas costas, gola, braços e coxas. Hoje o agente fez um bom trabalho, diz Brown. No passado ele já foi revistado por agentes que queriam que ele levantasse as pernas ou o corpo para que pudessem passar as mãos por suas nádegas. São duas ações que Brown não consegue realizar, devido à sua deficiência. Uma vez, depois de passar por duas revistas corporais completas, um agente lhe pediu algo impossível.

"A pessoa falou: ‘Agora preciso que você fique em pé’", contou Brown. "Falei: ‘Isso não vai acontecer’." Ele teve que chamar um supervisor para que a situação fosse resolvida.

Mais ou menos 40 minutos depois de chegar ao aeroporto, Brown chega a seu portão de embarque. Toma seu remédio e um pouco de água.

Normalmente ele não tomaria água antes de um voo, porque muitos banheiros de aeroporto são inacessíveis para ele. O Departamento de Transportes americano exige que os aviões com dois corredores tenham pelo menos um banheiro acessível a bordo, mas os aviões com apenas um corredor —que nos últimos anos têm sido usados com mais frequência para voos longos— não são obrigados a ter um banheiro acessível.

Mas hoje Brown está fazendo uma exceção à sua regra de não beber água, porque ele recentemente teve uma pedra no rim. Como não vai poder usar o banheiro do avião, está usando um cateter Foley —que pode aumentar o risco de ele ser machucado quando é carregado e transferido de lugar por funcionários.

Brown contou que em alguns voos anteriores foi obrigado a urinar numa garrafa, sentado em seu assento no avião, com cobertores jogados por cima.

Embarque no avião

Mais e mais passageiros chegam ao portão de embarque, alguns deles consumindo lanches ou sanduíches. Brown não come nada. Ele não pode correr o risco de precisar ir ao banheiro durante o voo, razão pela qual não comeu nada desde as 13h do dia anterior.

Abster-se de comer ou tomar água por horas antes de um voo é uma prática comum entre muitos cadeirantes que não têm como acessar o banheiro.

Quando chega a hora de embarcar, Brown tem que novamente explicar aos membros da tripulação da companhia aérea quanto pesa sua cadeira de rodas e quantas pessoas são necessárias para tirá-lo dela e colocá-lo numa cadeira de corredor.

Brown entra na ponte que leva ao avião antes de qualquer outro passageiro. Isso lhe dá privacidade durante sua transferência para o avião, a parte da viagem que mais o preocupa. Um escorregão ou queda podem significar um ferimento ou lesão grave.

Hoje há dois gerentes observando o processo. Isso é incomum, diz Brown.

No portão de embarque, Charles Brown é transferido de sua cadeira de rodas para a cadeira especial com que entrará no avião - Scott McIntyre/The New York Times

​No ar

O voo dura duas horas, e a cada minuto ou dois Brown se mexe em espasmos. Suas pernas se abrem para fora, levando seu joelho direito a projetar-se no corredor e fazendo seus quadris doer. (Ele sempre é colocado num assento de corredor, não ao lado da janela, porque é mais fácil para a tripulação colocá-lo em um desses lugares). Em sua cadeira de rodas feita sob medida, há almofadas que mantêm suas pernas no lugar. No avião, o melhor substituto são suas mãos, que ele usa constantemente para reajustar suas pernas e trazê-las para dentro. Quando o voo chega ao fim, ele avalia o nível de dor que está sentindo nos quadris como um 2 ou 3 numa escala de 1 a 10, comparando-a a uma dor de cabeça irritante.

Logo antes do pouso, Brown pressiona o braço direito contra o assento à sua frente e faz força. O avião pousa com um baque. Brown está tentando impedir sua cabeça de chocar-se com as costas duras do assento da frente.

Enquanto os outros passageiros desembarcam, malas e mochilas de todos os tamanhos e cores passam ao lado de Brown, algumas delas batendo em seu joelho. Brown e seu companheiro de viagem são os últimos a desembarcar. Estão esperando para funcionários da companhia aérea trazerem sua cadeira sob medida para a ponte do avião, algo que as companhias aéreas têm a obrigação de fazer se foi solicitado pelo passageiro.

Brown não quer sair de seu assento e ir para a cadeira de corredor até saber que sua cadeira de rodas própria está pronta para recebê-lo na ponte do avião. Ele explica que, se passar mais de 20 minutos na cadeira de corredor, provavelmente ficará com úlceras de pressão. Mas já houve voos em que ele foi obrigado a esperar sentado na cadeira de corredor por quase uma hora enquanto espera a tripulação localizar sua cadeira de rodas.

Saindo do avião

O pessoal de limpeza já entrou na aeronave, passando aspirador, limpando os assentos e recolhendo o lixo. Funcionários da companhia perguntam a Brown repetidas vezes se ele está pronto para desembarcar, apesar de sua cadeira de rodas não estar pronta. A tripulação está sob pressão, precisa subir no avião para o voo seguinte. Brown acaba cedendo, apesar de sua cadeira de rodas ainda não estar pronta.

Os dois homens que levantam Brown para transferi-lo do assento do avião parecem hesitantes, com medo de machucá-lo. Brown tenta lhes dizer para segurá-lo com firmeza.

Os funcionários não o içam à altura suficiente, levando-o a chocar-se com o descanso de braço erguido e ser parcialmente arrastado para dentro da cadeira de corredor, caindo nela com um baque surdo. As tiras da cadeira para segurar seus pés no lugar não parecem estar funcionando corretamente. Um tripulante as prende, solta e repete o processo três vezes.

Brown é empurrado para fora da ponte diante de uma multidão de passageiros que aguardam para embarcar no avião para o voo seguinte. O embarque está atrasado. Alguns parecem impacientes; outros, cansados. Muitos olham para ele. Quando ele passa por um desconhecido, empurrado na cadeira de corredor, o homem resmunga: "É um caos".

Cerca de dez minutos mais tarde, funcionários trazem a cadeira de rodas de Brown para o portão e começam a transferi-lo diante de uma multidão de passageiros.

"É frustrante", ele comenta. "Não vou mais dizer que é constrangedor, porque já superei tudo isso. Mas é meio constrangedor sim, especialmente se suas calças tiverem sido puxadas para baixo, deixando sua bunda à mostra." Já houve ocasiões anteriores em que suas calças caíram enquanto ele estava sendo transferido em público.

Charles Brown checa o status de seu voo durante uma escala - Scott McIntyre/The New York Times

Uma escala e uma conexão

Brown tem uma escala de duas horas em Charlotte e deve partir às 14h45 para San Antonio, num voo previsto para chegar às 16h42. Enquanto espera, seu estômago começa a ficar "trêmulo", ele conta.

Logo antes do embarque ser anunciado, o funcionário no portão anuncia um atraso. Quando o embarque vai começar, funcionários da companhia aérea empurram três idosas em cadeiras de rodas comuns do aeroporto —destinada a pessoas que não conseguem caminhar longas distâncias— pela ponte do avião, para embarcarem primeiro. Depois disso, os passageiros comuns começam a se aglomerar ao redor do portão. Uma família com um carrinho de bebê faz o check-in e começa a andar para a ponte. No meio de todo movimento, Brown parece ter sido completamente esquecido.

Ele começa a irritar-se com os agentes do check-in. O Departamento de Transportes estipula que passageiros deficientes físicos que precisam de tempo ou assistência para embarcar devem embarcar primeiro. Outra orientação diz que as tripulações devem, se possível, evitar transferir um passageiro da cadeira de corredor para um assento no avião na presença de outras pessoas.

Pouco depois de reclamar, Brown é levado rapidamente pela ponte. Ele abana a cabeça, frustrado e descrente, quando uma supervisora insiste que não fez nada de errado.

Dois homens o transferem rapidamente e com força para a cadeira de corredor e então para seu assento, numa confusão de movimentos que deixa Brown ofegante depois.

O segundo pouso é mais suave, mas o avião ainda chacoalha e treme quando reduz a velocidade. Mais uma vez Brown estica o braço para a frente e faz força contra o assento da frente, tentando-se conservar-se firme, mas a estas alturas seu cotovelo está tremendo de exaustão.

As pessoas começam a desembarcar às 18h50. Pouco depois de todos terem desembarcado, funcionários de jaleco amarelo começam a fazer a faxina da aeronave em volta de Brown.

Às 19h10 sua cadeira de rodas feita sob medida está à sua espera na ponte. Brown é transferido suavemente de novo para a cadeira do corredor, mas é depositado um pouco torto, de modo que um tripulante do avião precisa segurar seus joelhos para que não batam em cada assento no percurso de saída.

Amy Lawrence, uma porta-voz da American Airlines, disse em email que a companhia se esforça para garantir uma experiência positiva para passageiros com deficiência.

"Nos últimos anos temos dado ênfase especial a garantir aos membros de nossa equipe as ferramentas e os recursos de que necessitam para lidar corretamente com os aparelhos de mobilidade dos passageiros, e em consequência disso temos visto melhoras no atendimento", escreveu. Ela disse que um desses esforços foi a introdução de etiquetas de bagagem específicas para cadeiras de rodas em todos os voos. As etiquetas podem melhorar o rastreamento dos aparelhos de mobilidade e deixar mais claro quais são as características de cada um.

Manuseio da bagagem

Brown vai buscar sua bagagem e é informado por um funcionário que o aeroporto de San Antonio não tem um serviço de carregador disponível para ajudá-lo a levar toda sua bagagem até o carro. O Departamento de Transportes americano exige que as companhias aéreas prestem assistência aos passageiros deficientes, carregando sua bagagem despachada, se for preciso. Mas passageiros com deficiências se queixam de que, na prática, essa assistência muitas vezes não é prestada ou então eles não conseguem encontrar ninguém para ajudá-los.

Erin Rodriguez, uma representante do Aeroporto Internacional de San Antonio, disse que todas as companhias aéreas dão assistência gratuita a cadeirantes, incluindo ajudá-los com sua bagagem. Ela acrescentou que o aeroporto tem telefones espalhados pelo terminal para uso de passageiros que precisem de assistência imediata ou após o expediente.

O sol está se pondo, deixando o céu cor de rosa por baixo de grandes nuvens escuras, quando Brown manobra sua cadeira para fora do aeroporto fresquinho, saindo para o calor úmido do Texas. (No final, seu companheiro de viagem o ajudou com a bagagem. Teria sido dificílimo se Brown tivesse tido que lidar com isso sozinho.)

Às 19h38 ele manobra a cadeira facilmente, subindo uma rampa para entrar um carro que o aguarda e que, diferentemente dos aviões nos quais acabou de viajar, foi adaptado especialmente para acomodar sua cadeira de rodas.

No início de julho a Paralyzed Veterans of America apresentou uma queixa formal contra a American Airlines em nome de quatro membros de sua organização, entre eles Charles Brown. O nome de Brown foi incluído devido à sua experiência nos voos que o NYT documentou em maio.

Tradução de Clara Allain

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