Siga a folha

Descrição de chapéu Livros

'Dostoiévski foi a minha Sibéria intelectual', diz tradutor Paulo Bezerra

Livro sobre época em que autor russo cumpriu pena em Omsk ganha tradução brasileira em 2020

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Belo Horizonte

Paulo Bezerra tem um segredo. Sua incursão mais recente nos escritos de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) o mantém nas cidades siberianas de Omsk e Semipalatinsk há mais de três anos, convivendo com dialetos e gírias de tipos da prisão local no século 19, mesmo quando há sol no Rio de Janeiro, onde mora.

O trabalho, conta ele, segue o ritmo de um aposentado, ainda que nesse meio tempo tenha retraduzido outras duas obras e traduzido três livros de teoria literária de Mikhail Bakhtin. 

Depois de trazer direto para o português os cinco romances principais de Dostoiévski, Bezerra resolveu abraçar a tarefa de trabalhar no livro sobre a época em que o escritor cumpriu pena na Sibéria, condenado por participar das discussões políticas do intelectual Círculo de Petrachévski.

Em 1854, Dostoiévski terminou os quatro anos de trabalhos forçados em Omsk e começou a segunda parte da sentença: servir ao Exército russo por tempo indeterminado. Soldado raso do 7º Batalhão siberiano, voltou a escrever.

As notas deram origem à história de Aleksandr Goriântchikov, que cumpre pena pelo assassinato da mulher na prisão e escreve sobre outros presos em uma crônica que Bezerra define como espécie de inferno russo à la Dante.

No Brasil, o livro é traduzido ora como "Recordações", ora como 'Memórias da Casa dos Mortos" (1861), o que leva ao segredo que o tradutor pretende manter até que a versão de sua autoria saia pela Editora 34 —a previsão é para 2020.

“Eu não vou adiantar porque senão vai aparecer amanhã uma editora pirata colocando o título que eu vou dar. O termo em russo é outro”, explica ele, recitando firme e calmo o título original, Zapiski iz Miórtvovo doma. “Não digo que são 100% errados, são inadequados.”

O russo ele aprendeu no tempo da URSS. Operário, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, Bezerra estava em Moscou, fazendo cursos, quando Castello Branco assumiu com o golpe que instaurou a ditadura militar, e acabou ficando por lá. Estudou russo, literatura e política, trabalhou em rádio e forjou-se no ofício de tradutor.

De longe, acompanhava as notícias do Brasil. Teve irmãos e amigos presos e torturados, um dos seus conhecidos foi morto com uma injeção para matar cavalo. Contrário à luta armada desde sempre, com a distância do tempo e se identificando hoje como “social-democrata à moda escandinava”, ele condena a decisão do PC do B de “recrutar jovens para morrer”.

Quando voltou ao Brasil, completou a formação acadêmica que tinha começado na Rússia. Se formou pela Universidade Gama Filho, fez mestrado e doutorado na PUC-RJ e se tornou livre-docente em literatura russa pela USP.

O regime militar não o perseguiu, provavelmente pela manobra que ele operou logo no retorno. Voltou à cidade natal, Pedra Lavada, na Paraíba, e lá deixou o Azevedo da mãe e adotou o Bezerra do pai.

“Ainda devem estar procurando o Paulo Azevedo, porque havia inquérito contra mim. Acho que dei uma rasteira”, diz rindo.

Em 2001, sua tradução de "Crime e Castigo" direto do original virou um fenômeno e abriu um boom da literatura russa no Brasil, deixando para trás o sentimentalismo das traduções francesas e aproximando o público brasileiro do mundo russo. Bezerra gosta de lembrar que o pioneiro nas traduções diretas foi Boris Schnaiderman (1917-2016).

Nas notas da prisão com as quais trabalha agora, as dificuldades maiores, diz ele, estão na densidade do texto, que tem poucos diálogos e parágrafos que se estendem por três páginas ou mais, e na linguagem das personagens, marcada por gírias do crime e expressões de dialetos da Sibéria.

“Uma prisão como essa de Semipalatinsk levaria qualquer um à loucura, como levou muitos. Mas o gênio é diferente”, analisa. “A genialidade de Dostoiévski capta justamente a força lenitiva da arte na alma desses infelizes. Isso só um gênio consegue fazer.”

Há quem diga que a Sibéria foi a melhor coisa que aconteceu ao escritor. Os principais romances dele —"Crime e Castigo', "O Idiota", "Os Demônios", "O Adolescente" e "Os Irmãos Karamázov"— têm na gênese os tipos que o autor conheceu na prisão e que serviram de protótipo para suas personagens.

No documentário “A mulher com os cinco elefantes”, sobre sua vida, a ucraniana Svetlana Geier, que traduziu para o alemão as cinco obras, olha para a pilha de livros em cima da mesa, suspira, faz uma pausa e afirma que ninguém os traduz impunemente.

Bezerra concorda. “Eu dediquei os últimos 20 anos da minha vida a Dostoiévski. Talvez estivesse mais moço hoje se não o tivesse traduzido. Mas seguramente estaria muito mais pobre de espírito. Ele foi a minha Sibéria intelectual.”

Erramos: o texto foi alterado

Paulo Bezerra condenava decisão do PC do B —e não do PCB— de “recrutar jovens para morrer”. Informação já foi corrigida

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas