Siga a folha

Descrição de chapéu Livros Coronavírus

'Qualquer prefeito tem mais poder que a ONU', diz líder indígena Ailton Krenak

Para escritor, população à margem não é considerada parte da humanidade nem recebe cuidados na pandemia do coronavírus

Assinantes podem enviar 7 artigos por dia com acesso livre

ASSINE ou FAÇA LOGIN

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

São Paulo

O Doce costumava ser o mais belo rio que corre pela aldeia de Ailton Krenak. “Mas faz quatro anos que vemos o nosso avô em coma”, diz o escritor e ambientalista.

Sentado no único ponto da terra indígena krenak onde é possível encontrar sinal de internet, mas não de telefone, ele conta à reportagem por chamada de WhatsApp que o avô da aldeia é o rio Doce e que o coma foi induzido pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG), em novembro de 2015.

Uma das maiores tragédias socioambienta do país, que deixou 19 mortos e causou estragos por 700 km ao longo das margens do Doce, atingiu em cheio as terras dos krenak, mudou a vida dos 350 moradores e colocou em xeque os 4.000 hectares onde eles vivem, próximos ao município mineiro de Resplendor, a cerca de 450 km de onde estava a barragem.

O escritor e ambientalista Ailton Krenak - Mathilde Missioneiro/Folhapress

“Depois que a lama invadiu o rio, nós defendemos que toda mineração parasse por dez anos para que a natureza pudesse se reestabelecer, mas os técnicos disseram que era impossível”, lembra Krenak. “Aí veio o coronavírus e mostrou que isso é possível e que não se deve colocar a economia à frente das pessoas.”

O escritor diz que, após o agravamento da pandemia, a presença da mineradora sumiu da região. A Vale do Rio Doce afirma que está tomando precauções em relação à Covid-19, com trabalhadores em regime de home office e quarentena imediata para quem apresentar sintomas.

Mas, enquanto muitos apontam uma volta por cima gradual da natureza por causa do isolamento, com reaparecimento de animais silvestres e diminuição da poluição, Krenak é mais cauteloso. “Adoraria dizer que pássaros voltaram, animais estão bebendo água do rio e tudo está voltando a ser como antes, mas isso é um processo para décadas, não para semanas.”

Em seu livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, lançado no ano passado e que vem ganhando novas leituras desde a pandemia, Krenak critica instituições como a ONU, a Organização dos Estados Americanos e a própria Organização Mundial da Saúde.

De acordo com ele, todas já nasceram falidas. Às margens do rio Doce, enquanto pios de pássaros vazam pela ligação online, o autor diz acreditar que a emergência global só confirma essa sua tese.

“O que as organizações fizeram de concreto até agora?”, provoca. “Se for analisar, vai perceber que qualquer prefeito de cidade pequena tem mais poder que a ONU. Ele, sim, pode manter a população isolada em casa ou permitir que todos saiam nas ruas.”

A provocação está ligada a um dos conceitos centrais de “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, no qual ele crítica o conceito de humanidade.

Para Krenak, a ideia de comunidade global que ganhou força após a Segunda Guerra é uma mentira, já que aparta parte da população e empurra indígenas, negros, homossexuais e outros grupos para as margens —ou seja, para fora da tal humanidade seletiva.

A consequência, no contexto de combate à epidemia, é que essas pessoas não receberiam os cuidados devidos.

Segundo análise publicada pela Folha, por exemplo, o coronavírus é mais letal entre negros no país. Pretos e pardos representam quase 1 em cada 4 dos brasileiros hospitalizados com Síndrome Respiratória Aguda Grave (23,1%), mas são 1 em cada 3 entre os mortos pela Covid-19 (32,8%).

Os impactos do coronavírus sobre indígenas e populações das periferias estão intimamente atrelados à política, diz Krenak. Ficou famosa uma frase dita por ele em 2018, quando participava de um festival em Portugal na época da eleição de Jair Bolsonaro. “Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”, disse.

Para usar o conceito de seu livro mais recente, Krenak aponta que indígenas no Brasil estão encarado os fins de seus mundos desde a chegada dos europeus ao país.

Se, no período colonial, quando ainda eram chamados de botocudos do leste, os krenak foram perseguidos e massacrados por “guerras justas” ao serem acusados sem provas de antropofagia, em 2020 eles assistem ao presidente da República afirmar que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”.

Nas palavras do escritor, a eleição de figuras como Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos Estados Unidos, a pandemia do coronavírus, as queimadas da Amazônia, os rompimentos de barragens e os vazamentos de óleo, para citar casos mais recentes, são todos eventos interligados.

“Nesta noite sonhei com o derretimento de um imenso iceberg. Mas ele não era horizontal, como esses que costumamos ver no Ártico. Era vertical, como um arranha-céu”, diz Krenak, como em uma premonição de fim de mundo.

Ao ser perguntado se o momento que vivemos seria realmente um ponto final ou uma transformação, ele diz acreditar mais na segunda hipótese. Então pode ser bom? “Depende de quem vai sobrar.”

Ideias para Adiar o Fim do Mundo

Avaliação:
  • Preço: R$ 24,90 (88 págs.)
  • Autoria: Ailton Krenak
  • Editora: Companhia das Letras

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas