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'Atos Humanos' é peça política de acusação contra ditador coreano

Romance de Han Kang retrata massacres de civis nas manifestações pró-democracia no país, em 1980

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Atos Humanos

Avaliação: Ótimo
  • Preço: R$ 59,90 (192 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria: Han Kang
  • Editora: Todavia
  • Tradução: Ji Yun Kim

Han Kang é uma das escritoras coreanas mais lidas, dentro e fora do país, seguindo as pegadas de seu pai, Han Seung-won, também ele um importante romancista.

De fato, Han é criadora multimídia, pois além de escrever poesia, contos e romances, é artista visual e cantora de suas próprias composições musicais. Eu a ouvi e, embora faça um pop melancólico interessante, é muito superior como romancista. Diria o mesmo em relação às instalações: inteligentes, evocativas, mas sem a contundência dos textos.

Contundência, aliás, é termo justo para apresentar o romance “Atos Humanos”, de 2014, cujo assunto são os massacres dos civis ocorridos durante as manifestações pró-democracia na Coreia do Sul, em 1980 —rememorados no dia 18 de maio, o feriado mais importante do país.

Para situar o leitor, lembro que o ditador Park Jung Hee, autor de um golpe militar em 1961, governou o país durante 18 anos até ser assassinado em 1979. Outro grupo militar, desta vez liderado por Chun Doo Hwan, aproveitou-se da crise e deu um golpe dentro do golpe ao decretar uma famigerada “lei marcial”.

Houve protestos em todo o país, sobretudo em escolas e universidades. A maior manifestação civil deu-se em Gwangju, cidade natal de Han, ao sudoeste do país, onde os soldados entraram pelas ruas armados, prendendo e matando, com violência inaudita, os que participavam delas.

A escritora coreana Han Kang, autora de 'Atos Humanos' - Divulgação

O massacre, contudo, cimentou a luta pela democracia, hoje usufruída pela Coreia. O general golpista foi julgado e preso, embora hoje se encontre em liberdade, mesmo ainda respondendo na Justiça por vários crimes, pelos quais se espera que pague por toda a vida.

De certa maneira, “Atos Humanos” pode ser lido como uma peça política de acusação ao ditador, obtida graças a uma narrativa que acompanha várias personagens criadas com base nos testemunhos daqueles dias de horror.

Por exemplo, o capítulo de abertura acompanha as últimas horas de um menino de apenas 15 anos que se recusa a ser salvo, após o assassinato do melhor amigo; o seguinte descreve o comportamento hesitante dos espíritos dos mortos que assistem à putrefação dos seus corpos amontoados; outro refere o difícil encontro de dois sobreviventes da tortura, que mal suportam a memória que um traz ao outro.

O mais impressionante, entretanto, é um capítulo redigido na forma de um timeline burocrático que acompanha o fracasso de uma sobrevivente para dar o seu testemunho sobre o período em que foi barbaramente torturada.

Em seu silêncio, sobrepunham-se a impossibilidade de retomar o próprio corpo à mercê dos torturadores e a firme disposição de não querer perdoar nem ser perdoada por nada que aconteceu. O único presente que conseguia viver implicava no ódio ao próprio corpo e a qualquer resto de calor que pudesse suscitar, sentindo segurança apenas nos lugares mais frios e neutros.

Nesse quadro geral, o título de “Atos Humanos” —possivelmente adotado pela editora em função da tradução feita para o inglês, e não pela tradutora coreana, Ji Yun Kim— pode apontar o paradoxo insolúvel da razão submetida a eventos tão trágicos.

Não dá conta, porém, do aspecto mais surpreendente do romance, revelado no capítulo final, cuja enunciação é assumida pela autora que se debruça sobre lembranças e depoimentos a que quer dar voz. Aqui, a questão não é esquecer nem dizer a própria experiência, mas conjurar os mortos no presente da escrita.

Este momento, no qual o escritor descobre a forma para o seu tema terrível, só é traduzido pelo título original do romance, “O Menino Vem” —do qual só tive notícia graças a Jae Min, professor de português e estudos brasileiros na Universidade Hankuk.

Sem a vinda simbólica desse garoto morto no primeiro capítulo, perde-se a indicação da percepção chave de Han ao escrever o seu romance: a de que o relato do trauma só é possível pelo paradoxo de entregar a sua condução à morte mais sentida e incompreensível.

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