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Quem foi o escritor negro autodidata que retratou o Brasil no calor da abolição

Maranhense, Astolfo Marques escrevia crônicas sobre a situação da população negra do início do século 20

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São Paulo

No início do século 20, momento em que as fronteiras entre a literatura e os estudos folclóricos não estavam completamente demarcadas, escrever crônicas sobre o cotidiano da população negra do pós-abolição no Brasil tem contornos de registro histórico.

Mesmo assim, o material produzido pelo escritor maranhense Astolfo Marques quase se perdeu em meio a outros arquivos antigos. Desconhecido no cenário nacional atualmente, ele era um homem negro autodidata e foi um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras.

O escritor maranhense Astolfo Marques - Divulgação

Marques teve como matéria viva para a sua literatura uma república jovem, as complexidades dos sonhos após o fim oficial da escravidão e a vida cotidiana de uma população que vivia longe dos centros político e econômico, num período em que as diferenças regionais num país continental como o Brasil eram ainda mais acentuadas pela dificuldade de comunicação.

Resgatar a obra do escritor e o reapresentar ao público brasileiro é uma das propostas de "O Treze de Maio e Outras Estórias do Pós-Abolição", organizado pelo professor Matheus Gato, da Unicamp.

O livro, lançado em maio, reúne uma seleção de 17 textos de Marques, alguns deles publicados só na imprensa local na época. São narrativas sobre as reverberações do fim da escravatura na vida de anônimos numa região especialmente vitimada pela brutalidade do regime, como foi o Maranhão.

Os textos mostram mulheres que fazem da praça pública sua casa em conversas triviais sobre seus cotidianos, abordam a rotina de trabalho de operários, retratam as convenções sociais dos relacionamentos amorosos na época e falam sobre festas e tradições culturais da região.

Na crônica "Ser Treze", por exemplo, o leitor conhece as angústias de uma dupla de amigas que conversa sobre a falta de interesse de parte da população negra em comemorar o 13 de Maio. Em "O Discurso do Fabrício" é possível acompanhar os debates de trabalhadores sobre a República. Já em "Vicência" aparecem os desafios do amor de uma jovem que tem dois pretendentes e muitos olhares de reprovação.

Embora tenha sido considerado regionalista por seus pares da época, Marques tratava de temas abrangentes e ainda atuais, como a desigualdade de gênero no mercado de trabalho. Num dos trechos do conto "Na Avenida", por exemplo, está uma das críticas sociais mais explícitas do autor. "Época haverá em que não existirá gênero algum de trabalho, seja material ou intelectual, em que a mulher não tome parte", escreveu ele.

Além dos 17 contos, o livro traz também uma análise crítica e histórica de Gato, o organizador da coletânea, sobre a obra do escritor maranhense, sua carreira e os contextos político e social da região em que ele viveu. Segundo o professor, Marques lança um olhar feminino sobre a cidade de São Luis.

"É um olhar no qual as mulheres negras possuem um protagonismo muito grande. Ele era filho de uma lavadeira e engomadeira e tinha muitas irmãs mais velhas."

O pesquisador da Unicamp avalia que essa influência familiar configura o modo como o escritor maranhense percebe a vida da mulher negra, que se torna protagonista de seus contos. "Não só no sentido de ser o personagem principal, mas no sentido de tomar a palavra, de conduzir a história."

Segundo Gato, Marques privilegia totalmente a prosa em sua escrita. Ele era considerado, inclusive, um crítico do nefelibatismo —termo que descreve aqueles que vivem com a cabeça nas nuvens— e não gostava de ser chamado de poeta, mesmo que de brincadeira, pelos amigos. "Ele tinha o intuito de fazer uma obra literária que apresentasse uma contribuição histórica", diz Gato.

Nascido numa família negra livre em São Luís, em 1876, o escritor conviveu com pessoas negras já livres e outras que só conseguiram a liberdade anos depois. Além de escritor, ao longo de seus 42 anos de vida foi também jornalista e tradutor, publicou crônicas nos principais periódicos maranhenses e produziu estudos folclóricos e bibliográficos.

Entre seus livros estão "A Vida Maranhense", de 1905, "De São Luís a Teresina", de 1906, "Natal", de 1908, e "A Nova Aurora", de 1913. Segundo Gato, trazer Astolfo Marques à tona permite transgredir a linguagem da canonização intelectual e literária.

"São contos muito gostosos de ler, nos quais aprendemos muito sobre a história do Brasil." Ele lembra que esse material ficou conhecido como "de província", "pré-moderno" e "regionalista". Entretanto, segundo Gato, com os textos de Marques também se aprende a desafiar "esse jogo de classificações que elevam ou rebaixam uma obra". "É uma possibilidade de transgredir esses limites."

Gato afirma ainda que desconfia das classificações usadas para definir a obra de um autor. De acordo com o pesquisador, a produção de um escritor está diretamente ligada à experiência do leitor e ao contexto do autor.

"Um leitor tem uma gama de possibilidades de entendimento do texto. Pensando no Astolfo, o regionalismo foi uma das portas pelas quais ele conseguiu divulgar o seu trabalho. Mas o meu livro quer propor uma visão diferente", diz. "A visão é a de que Astolfo Marques serve para entender a história do Brasil."

Segundo Gato, a grande contribuição de Marques para a literatura é o legado de uma linguagem que mostra um olhar do país a partir "do que se constituía como periferia do Brasil, o antigo norte agrário".

O pesquisador o caracteriza como um autor com uma ligação muito forte com a oralidade. "São contos que tentam capturar a representação do que as pessoas estão fazendo da vida, com os termos e palavras utilizadas naquele cotidiano de ex-escravos e operários. São contos que ele escreveu para que qualquer pessoa conseguisse ler, para estabelecer um diálogo com aquele universo popular."

Segundo o pesquisador, o autor maranhense escreve contos que começam com uma história e dentro dela existe uma outra história secreta na qual está o verdadeiro desfecho. "Como o conto que fala do encontro de duas comadres na praça de São Luís e que se transforma na história sobre os efeitos da epidemia de peste bubônica", lembra.

Além de resgatar a obra de Marques como escritor, a coletânea também busca debater a questão do 13 de Maio. A data tem significado controverso e, ao mesmo tempo, relevante para o entendimento das mazelas que já atingiram o Brasil e também para a reflexão sobre o atual processo de reorganização social do país.

"Este livro permite complexificar a nossa percepção sobre o 13 de Maio", afirma Gato, que é sociólogo, além de pesquisador do Núcleo Afro do Cebrap e autor do livro "O Massacre de Libertos: Sobre Raça e República no Brasil".

Segundo ele, existem duas grandes narrativas sobre a oficialização do fim da escravidão. A primeira que atribui protagonismo exagerado a princesa Isabel, anulando a participação da própria população negra na busca por liberdade. A segunda é aquela que enquadra a abolição enquanto "farsa". "O livro tenta dar complexidade a ambas", diz.

Os textos de Marques reunidos na coletânea, por exemplo, mostram que mesmo sendo os negros em sua maioria já livres na época da assinatura da Lei Áurea, a oficialização foi importante para a população negra da época e foi comemorada, inclusive, com festejos anuais no Maranhão.

Gato, no entanto, deixa claro que entende e apoia as contestações do movimento negro em relação ao 13 de Maio. Segundo ele, com sua pesquisa e com o livro ele busca apenas mostrar que oficializar o processo de liberdade teve importância para a população negra da época, e que reconhecer isso não inviabiliza ou diminui as lutas atuais.

"No livro aparece sim [o 13 de Maio] como uma conquista, como algo importante para aquela gente. Por outro lado, o texto mostra todos os embaraços da reorganização social que precisaram ocorrer", argumenta.

"Percebi que as crônicas do Astolfo eram uma possibilidade de sofisticar o nosso entendimento sobre o 13 de Maio a partir da perspectiva de um intelectual negro que viveu aquele período."

Embora a data marque oficialmente o fim da escravidão no Brasil, o 13 de Maio não é celebrado pelo movimento negro. Um dos motivos é o tratamento dispensado aos ex-escravos, na época, com falta de políticas públicas para que a população negra fosse inserida na sociedade.

Depois de mais de três séculos como escravos, essa população não recebeu nenhum tipo de indenização ou ajuda, processo que refletiu em problemas sociais enfrentados até os dias atuais.

Por isso, o dia 20 de novembro, que faz referência à morte do líder negro Zumbi dos Palmares, foi escolhido como o Dia da Consciência Negra para simbolizar a resistência dos próprios negros contra a escravidão.

O Treze de Maio e Outras Estórias do Pós-Abolição

  • Preço R$ 54,90; ebook R$ 34,90
  • Autoria Astolfo Marques
  • Editora Fósforo
  • Organização Matheus Gato
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