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'Mestres Antigos', de Thomas Bernhard, é uma joia febril e impiedosa

Escritor parte de um protocolo absurdo para um assalto terrorista contra os mestres da cultura germano-austríaca

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Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Mestres Antigos

Avaliação:
  • Preço: R$ 64,90 (184 págs.); R$ 39,90 (ebook)
  • Autor: Thomas Bernhard
  • Editora: Companhia das Letras

Para fazer uma apresentação mínima do interesse crucial de Thomas Bernhard, talvez bastasse citar o crítico Marcel Reich-Ranicki, que o considera "uma das três mais fortes energias épicas" da prosa alemã recente, ladeado apenas por Günter Grass e Wolfgang Koeppen.

Também, quando se fala dele, é quase inevitável acrescentar a infância difícil, filho ilegítimo que foi —talvez fruto de um estupro—, de um pai que jamais o reconheceu, e de uma mãe com quem nunca se entendeu, cedo internando-o num colégio nazista, depois convertido em católico. O horror às duas instituições, somado ao que devotava à Áustria, o marcou tão fundo quanto a tuberculose mal curada de que padeceu toda a vida.

A sua bibliografia é ampla, da qual, como leitor, não como especialista, destacaria a poesia de "Na Terra e no Inferno, de 1957, o romance "Perturbação", de 1967, a peça "A Força do Hábito", de 1974, a miscelânea de "O Imitador de Vozes", de 1978, o monólogo "O Sobrinho de Wittgenstein", de 1982, e, enfim, o ciclo de memórias reunido em 1985 em "Origem" para contemplar os diversos gêneros em que produziu.

O escritor austríaco Thomas Bernhard - Reprodução

Se for dado como romance, "Mestres Antigos", do mesmo ano, é o seu penúltimo, antecedendo "Extinção", de 1986 —mas cabe notar a rubrica "comédia" no subtítulo. O livro é uma joia cujo segredo talvez resida na combinação única de três camadas distintas no tom afetivo, no andamento narrativo e no gênero discursivo.

A primeira dessas camadas estabelece um protocolo absurdo, que dispõe as suas poucas personagens num circuito fechado, estático e inverossímil. No caso, um crítico musical, Reger, está sentado diante do quadro "Homem de Barba Branca", de Tintoretto, no Museu de História da Arte de Viena, sendo, por sua vez, observado por um escritor e filósofo, que é também seu discípulo.

Além deles, surge ocasionalmente na sala um guarda do museu, que cuida, mediante favores regulares, para que ninguém dispute com Reger o banco onde se senta. Essa simples disposição espacial, em que cada um tem o seu ângulo fixo de observação e de espera, já compõe um quadro bastante excêntrico. E tudo se amplifica quando ficamos sabendo que a cena se repete ao longo de mais de 30 anos! Portanto, é um circuito cujo traço comum parece ser o profundo amor da monotonia.

A segunda camada dá-se em torno do tema do luto na velhice, pois o velho crítico perdera a sua mulher — "cosmopolita, inteligente e abastada"—, que fora também uma discípula excelente. O impacto da morte da mulher sobre Reger é tal que ele apenas se salva do suicídio pela lenta retomada da rotina e a compreensão de que a morte da pessoa amada é uma "libertação monstruosa".

A terceira camada do livro compõe-se de um vitupério contra a Áustria e sua gente, simbolizada pela sua celebrada cultura artística. Não se trata de crítica isolada a um ou outro artista, mas de um verdadeiro assalto terrorista contra todos os mestres da cultura germano-austríaca, além de reduzir tudo o que se entende por "arte contemporânea" ao mais banal sentimentalismo kitsch.

É difícil escolher exemplos do massacre em série promovido por Reger, mas nomes como os de Dürer —"pavoroso protonazista"—, Bruckner —"religioso pubertário"—, Stifter —"tagarela insuportável"— e, acima de todos, Heidegger —"esterco dengoso"—, são espancados com desvelo. O efeito geral alterna susto e gargalhada, como na sátira mais crua, em que o riso se obtém à medida da ferida que provoca.

Da articulação engenhosa dessas camadas, a última é hegemônica, dando ao livro um fluxo imprecatório e histriônico, uma eloquência vivaz e impiedosa a serviço de um intelecto agudo. E, ademais, incorruptível, pois Reger enxerga toda a cultura a que devotou a vida do ponto de vista da morte e dos hábitos que não mudam nunca.

Ancorado, portanto, fora do tempo, o ritmo que imprime ao discurso é paradoxalmente febril —um destampatório que não admite meias palavras, pactos de interesse ou freios amorosos. Nesse estouro da barragem, apenas a violência rítmica das imprecações e lamentos rege o discurso. No entanto, no cerne da tempestade niilista, está o vazio.

O desabafo de Reger nunca é direto, mas rebatido nas anotações do discípulo como eco tardio e estrepitoso de uma explosão que já não está mais ali. Por isso, o curioso efeito final do texto é o de um misto de monólogo cômico e de testamento vingativo.

É bem verdade que o velho crítico tateia um retorno à monotonia habitual, mas aí já está claro que salvar-se é moralmente incorreto. O "lamaceiro moral" em que o país está atolado é definitivo. Resta apenas o oxímoro de "um país tão bonito e esta sociedade absolutamente brutal, vulgar e autodestrutiva", de que o próprio Reger, afinal, não deixa de ser uma evidência.

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