Por que 'Tudo em Todo o Lugar', mesmo que ruim, mereceu vencer o Oscar
Antítese do velho cinema hollywoodiano, filme dos Daniels espelha estilhaçamento social, da linguagem e das identidades
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No multiverso do século 21, Hollywood padece de um tardio complexo de Cannes. A festa do Oscar continua a ser apoteose cafona do colonialismo cinematográfico americano, mas agora sem aquela nota genuína de conservadorismo do cinemão hollywoodiano, feito com orçamentos generosos e admirável domínio das convenções e clichês.
A estatueta era um selo de garantia de entretenimento, com promessa de cenas eletrizantes, paixões, heroísmo, lágrimas e lições de vida. Agora prevalecem nas escolhas as boas intenções do liberalismo multicultural californiano, a consagrar filmes e pessoas que em outras épocas mal pisariam no tapete vermelho.
Ao redefinir os requisitos, a Academia concede à periferia que sente no salão borbulhante e oferece a si mesma troféus de correção política, produzindo notícias do tipo "o primeiro diretor latino-americano vitorioso" ou "a primeira mulher asiática a ganhar a estatueta".
Bem, mas isso não é bom? No caso de Michelle Yeoh, achei muito bom, já que sua performance é mesmo excelente. Mas em alguma medida o sentido desse multiverso hollywoodiano do século 21 reside na homenagem que o vício presta à virtude.
Afinal, como disse Steven Spielberg a Tom Cruise, quem realmente livrou a bunda da indústria com a arrecadação de uma montanha de dinheiro foi ele, com seu "Top Gun: Maverick", um filme de ação à moda antiga. Hétero, masculino, patriótico, militarista, é sobretudo uma história sobre o indivíduo em luta contra sua obsolescência promovida pela tecnologia e pelo sistema.
Já os diretores Daniel Kwan e Daniel Scheinert fizeram em "Tudo em Todo o Lugar ao Mesmo Tempo" a antítese do velho cinemão hollywoodiano, e isso não é um spoiler —o filme aliás, como observou um crítico, não é muito passível de spoiler, não tem o que possa ser vazado para desfazer uma surpresa.
Devo dizer que fui pouco a pouco ficando fascinado ao ver o filme vencedor do Oscar no streaming. Às primeiras bizarrices reagi com um "não, gente, isso não pode estar acontecendo". Eis então que os diretores tratam de dobrar e redobrar a aposta rumando inexoravelmente para o caos.
A estética vai transmutando freneticamente do realismo ao surrealismo vulgar, passando pelo trash digital e por variadas referências a gêneros cinematográficos.
Fui me deixando levar pelo turbilhão e comecei a ver naquilo uma espécie de mosaico alegórico do estilhaçamento da experiência social, da linguagem, do conhecimento, das identidades e da vida no mundo em que sobrevivemos.
O clima me fez lembrar produções recentes, como "Bacurau" ou "Não Olhe para Cima", que tematizam distopias contemporâneas. Via ali alguma coisa também do nosso cinema autoral ou underground dos anos 1960 e 1970, um certo gosto pelo mau gosto e pelo absurdo, pelo humor corrosivo e pelo descontrole.
O filme é longo, poderia tranquilamente ser cortado, o que atenuaria a sensação de enfado que pode ser insuportável. Vi aos pedaços, na TV. E gostei. Porque é bom e porque é ruim.
Editor da Ilustríssima
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